Com medo da neve e até falta de comida, brasileiros tentam sair do Chile
Cerca de 30 brasileiros estão há quase 60 dias tentando deixar o Chile por vias terrestres. São famílias que estavam viajando pela América do Sul com veículos próprios e dependem de um salvo-conduto para atravessarem o país e a Argentina, uma vez que as fronteiras estão fechadas por causa da pandemia do coronavírus.
A intenção do grupo, espalhado pelo território chileno e que conta com quase 15 veículos, é atravessar em comboio o Paso Internacional Los Libertadores, na divisa entre os dois países pelos Andes. Eles acreditam que 2 ou 3 dias sejam suficientes para percorrer toda a Argentina e chegar ao Brasil.
Enquanto a autorização não é dada pelos governos locais, eles têm de lidar com o medo da chegada do inverno intenso, a possibilidade de a neve bloquear as estradas andinas, o dólar desenfreado e até falta de comida.
Entre as situações mais críticas, há famílias na região de Los Lagos, sul do país, que não conseguem sequer chegar à capital Santiago, onde poderiam ao menos tentar um voo para o Brasil, devido às barreiras rodoviárias dentro do próprio Chile.
Criança sem remédio
A vendedora Luene Netto, o marido Doglas Albino, empresário, e a filha Maria Clara, de 3 anos, estão isolados em Futaleufú, divisa com Argentina. Eles saíram de Presidente Getúlio, no Vale do Itajaí catarinense, em 15 de fevereiro, com tudo necessário para uma viagem de Kombi que duraria de 30 a 45 dias - inclusive estoque reforçado de alimentos adequados para a garotinha, intolerante à lactose no grau mais alto.
"Saímos no sentido do Uruguai, conhecemos alguns pontos turísticos, entramos na Argentina e fomos em direção ao sul ao Chile. No retorno, em 18 de março, fomos barrados na fronteira com a Argentina. A região é mais inóspita e não tem sinal de celular o tempo todo. Wi-fi, só em cidades maiores", comenta a esposa.
Foi justamente no dia 18, quando conseguiram acesso à internet, que foram alertados pela família sobre o bloqueio dos limites geográficos.
Andamos mais de 11 horas consecutivas para chegar o mais próximo possível de uma fronteira com a Argentina. O decreto começaria a valer à meia-noite. Chegamos às 22 horas, mas a fronteira tinha fechado às 20 horas. Foi um desespero!"
Arrumaram um lugar para passar a noite na cidade fronteiriça e ali estão há dois meses. Eles sequer conseguem chegar à região de Santiago, a quase 1.600 quilômetros, pois dependem de duas balsas que ligam o Sul ao Norte do país, hoje restritas ao transporte de itens de primeira necessidade.
Assim como todo o grupo no Chile, o casal tem recorrido não só aos representantes do Ministério das Relações Exteriores, mas também a políticos, tentando todo tipo de ajuda, já que Futaleufú tem cerca de 2 mil habitantes e estrutura limitadíssima — cidades maiores estão em um raio de 300 quilômetros, mas há barreiras rodoviárias até lá.
Por essa razão, eles já não encontram leite e produtos sem lactose para a filha, muito menos a medicação necessária para evitar cólicas intestinais e alergias provocadas por alimentos tradicionais. Isso sem contar os preços estratosféricos — Luene cita que três bistecas de porco chegam a custar o equivalente a R$ 100.
"Estamos abrigados na cabana de um casal de senhores que nos acolheu desde o primeiro dia e tem nos ajudado de todas as formas, mas não temos onde comprar alimentos próprios para minha filha ou remédios, que já acabaram", diz.
Trabalho em troca de comida
Não muito longe da família de Presidente Getúlio, outro casal catarinense só tem a Kombi em que viajam como opção de hospedagem, e já enfrentam madrugadas com temperaturas abaixo de zero. A neve sobre as montanhas próximas aumenta dia após dia.
O autônomo Stefan Hermann, 58 anos, e a esposa Norma Sinestri, 64, saíram de Penha em 2 de fevereiro. Descendo pelo sul brasileiro, entraram no Uruguai e seguiram até Ushuaia, na Patagônia Argentina. Seguiram para o Chile, viajaram pela famosa Carretera Austral, e pretendiam estar em casa no início de abril.
Chegaram em Futaleufú em 19 de março e também encontraram as barreiras fechadas. Já com poucos recursos e sem encontrar hostels com preço acessível — e que não tivesse receio de receber estrangeiros, como constataram —, optaram por se isolar nas montanhas, perto de um rio.
É dali que tiram água para beber e é onde tomam banho e pescam. Além de colher frutas nas árvores, o casal tem trocado trabalho — corte de lenha e serviços gerais — por outros alimentos em uma chácara próxima.
Moramos, comemos e dormimos na Kombi. Não temos nem roupas suficientes para o inverno e já nevou três vezes. Tem chovido demais e o rio está subindo. Precisamos muito de ajuda para sair daqui"
Seguro-saúde quase três vezes mais caro
A designer Aline Cândido e o marido Alex Cruz, da área de TI, deixaram São Paulo com os filhos Manu, 9 anos, Éric e Felipe, gêmeos de 2, em 1º de março. O planejado era uma viagem de aproximadamente 40 dias pela América do Sul, antes de embarcarem para os Estados Unidos, na segunda metade de abril, para um aventura de motorhome pelo Hemisfério Norte - batizada de BR-5 na Estrada.
Chegaram ao Chile em 8 de março. Estavam em Pucón, a quase 800 quilômetros da capital Santiago, quando a quarentena foi decretada no país - e ali ficaram.
Alugamos uma casa no AirBnb para o fim de semana e já estão nela há 2 meses. Semana passada, precisei comprar roupas porque o inverno está chegando e a temperatura, já bem mais baixa"
Com o dólar subindo, o planejamento financeiro da família já aumentou em 50%. Foi necessário até abrir mão do seguro de saúde internacional por causa dos reflexos da pandemia.
"Quando renovamos a hospedagem, estendemos o plano de saúde para mais um mês. Pagamos R$ 1.800 para nós cinco. Fomos renovar a mesma cobertura e subiu para R$ 4.500. É impossível esse valor!", afirma Aline, que segue trabalhando remotamente.
A família não considerou comprar passagens de avião, tanto pelo investimento elevado quanto os riscos que a viagem ofereceria.
Não iríamos expor as crianças ao vírus em voos e aeroportos. Queremos ir no nosso carro, com vidro fechado, tocando direto para o Brasil"
Quando voltarem para São Paulo, terão de lidar com outra questão: como iriam emendar uma viagem na outra, alugaram o apartamento deles por um ano. E também não imaginam quando poderão retomar o sonho da viagem na América do Norte.
Até lá, o motorhome comprado há pouco tempo ficará estacionado, aguardando-os. Com o dólar elevado, vender o veículo agora significaria ainda mais prejuízo.
Viagem ao redor do mundo interrompida
Quem também está revendo planos a longo prazo é o casal Joaquim Alves Pinto Sobrinho, 35 anos, e a esposa Juliana Manso de Almeida, 34, da capital paulista. Em abril de 2019, eles abandonaram a rotina e saíram em viagem ao redor do mundo. Previam rodar por 2 ou 3 anos, antes de aumentar a família.
Na primeira fase da viagem, compartilhada no perfil @ausenciatemporaria, percorreram boa parte do Brasil. Em dezembro, deram o start no rolê internacional, rumando primeiramente para a Patagônia Argentina. Entraram no Chile em 12 de fevereiro e não conseguiram mais sair. O casal chegou a comprar passagens para um dos voos operados pela Latam, que acabou cancelado.
"A gente não sabe como vai ser, porque (a viagem) tinha um prazo para acontecer, pois não queremos ter filho muito tarde", diz Joaquim.
Como não sabemos quanto vai durar a questão do coronavírus, nem queremos ficar viajando o mundo na incerteza de ter uma segunda ou terceira onda, queremos voltar com nossa casa, que é nosso carro, esperar tudo passar e decidir se vamos realizar esse sonho ou não"
Atualmente, eles estão em Lonquimay, na região de Araucanía, mais ou menos 900 quilômetros ao sul de Santiago, a pouco mais de 20 quilômetros na divisa com Argentina. Ali, veem caminhões atravessando a fronteira o tempo todo, mas nenhum turista. Se nada for definido nos próximos dias, tentarão chegar mais perto da capital chilena, cuja região metropolitana entrou em bloqueio total na última sexta-feira (15).
Família aguarda na casa-móvel
O casal Marcos Gadaian e Ana Cristina Torres, de São Paulo, também não cogitou deixar o Chile de avião com os filhos Caetano, 7, e Teresa, 4, porque é no truck camper que eles moram e viajam há 5 anos pelo mundo — a aventura é registrada no perfil @onossoquintal.
No último quinquênio, eles visitaram praticamente toda as Américas, indo do Sul ao Norte, passando pela Central. Desembarcaram de avião no Chile em 14 de março, depois de uma longa temporada no México. A casa-móvel havia sido despachada de navio, e chegou um mês depois.
"Nesse meio-tempo, ficamos de quarentena em um AirBnb. Assim que o carro chegou, fomos para um camping, que foi aberto para nós", conta Ana Cristina. O acampamento fica em Limache, a cerca de 100 quilômetros de Santiago.
A mãe lembra que todo o grupo tem mantido contato frequente com os representantes da rede consular brasileira, tanto na Argentina quanto no Chile. A esperança é que os governos vizinhos abram a exceção para o comboio cumprir o trajeto o mais rápido possível.
Dormiremos nos nossos carros, não precisaremos fazer compras e não teremos contato com ninguém"
Com o avanço do inverno, que registra temperaturas baixíssimas naquela região e com a possibilidade de a neve bloquear a estrada que os brasileiros pretendem utilizar, o medo tem feito parte da rotina do grupo, que se comunica via WhatsApp. "Se não conseguirmos logo, podemos ficar presos aqui até a neve derreter, no verão, o que é impraticável com o dólar subindo tanto", diz Ana Cristina.
A semana que virou dois meses
A primeira viagem de carro fora do Brasil de João Carlos Figueiredo da Fonseca, 64 anos, e Fátima Aparecida Nunes Cardoso, 58, era para durar sete dias apenas, mas já extrapolou todos os limites. Moradores de São Sebastião, no litoral paulista, eles só queriam chegar até São Pedro do Atacama e voltar.
Entraram no Chile em 14 de março e, no dia seguinte, o cenário do coronavírus ganhou novas proporções. "Os passeios todos foram cancelados; não fizemos nenhum". conta João Carlo.
Não estávamos prevendo que a viagem de uma semana viraria de dois meses. Os recursos foram diminuindo e tivemos que sair do camping para economizar"
Resolveram se isolar no meio do deserto, vivendo na camper em que viajam, a pouco mais de 10 quilômetros de São Pedro do Atacama. "É um pouco apertado, mas optamos por ficar ali. Só íamos uma vez por semana para São Pedro fazer compras e pegar água potável, diz.
Soubemos de casos de hostilidade com brasileiros por lá e achamos que era melhor para preservar nossa segurança também"
Neste fim de semana, os dois seguiram até Limache, no mesmo camping onde estão Ana Cristina e Marcos. Há mais brasileiros seguindo para a região, que tem acesso fácil para o Paso Los Libertadores.
"Ofereceram um voo para a gente, mas não adianta pegarmos um avião. Sou uma pessoa com um risco muito maior, por causa da idade. Prefiro voltar com meu veículo, até para não ter o custo de voltar buscá-lo depois", argumenta o autônomo.
O que diz o Itamaraty
Nossa entrou em contato com o Ministério das Relações Exteriores para saber sobre a ajuda que está sendo dispensada ao grupo de brasileiros, inclusive os que enfrentam situações mais críticas. O Itamaraty respondeu que tem mantido contato frequente com o grupo e citou os voos que trouxeram outros turistas, realizados dias 1 e 14 de maio.
"Ressaltamos que o trânsito dos brasileiros está impedido pela severa restrição do transporte rodoviário, medida implementada tanto pelas autoridades chilenas, quanto pelos outros países fronteiriços. As regras de isolamento previstas por todos esses países implicam na interrupção de tráfego não essencial em suas rodovias e no controle estrito de suas fronteiras", disse o Ministério, em resposta.
Segundo o governo, "o Itamaraty está negociando com as autoridades dos países envolvidos a garantia do trajeto dessas pessoas. "Salientamos tratar-se de medida imposta por autoridade estrangeira, por motivos sanitários, o que tem motivado pouca flexibilidade".
Por fim, a nota ainda diz: "A Embaixada e o Consulado em Santiago continuam trabalhando para buscar solução para o problema. Solicitamos aos brasileiros que mantenham contato com as representações brasileiras no Chile".
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