Projeto une refeições solidárias e ocupação remunerada durante a pandemia
É um clichê até já esgarçado, de tão repetido, mas as crises podem render boas oportunidades. Principalmente se o que estiver em jogo for ajudar outras pessoas a sobreviverem a tempos difíceis, como esses que o mundo tem enfrentado com a pandemia da covid-19.
No começo de março, quando as portas do Refettorio Gastromotiva, no Rio de Janeiro, fecharam para seguir as recomendações de distanciamento social da Organização Mundial da Saúde (OMS), a Gastromotiva, ONG de gastronomia social que opera o espaço, continuou a receber os alimentos que chegam de seus parceiros e patrocinadores.
Mas sem poder alimentar as pessoas que costumam fazer fila para comer as cerca de 90 refeições diárias servidas ali (algumas delas para garantir a única refeição do dia), a instituição passou a destinar as doações a iniciativas parceiras que continuam atendendo moradores de rua nesse cenário de insegurança e de crise econômica, o que tem levado ainda mais pessoas à situação fome no mundo todo.
Nasce uma parceria
Mas o e-mail de uma ex-aluna mudou o destino dos alimentos e possibilitou à ONG, que surgiu em 2004 para usar o ensino da gastronomia como ferramenta de inclusão, manter seu propósito mesmo durante a quarentena. E ainda ajudar uma rede de empreendedores a seguir trabalhando.
A mensagem de Milena Pimenta, que pedia alimentos para cozinhar de forma voluntária para crianças na sua comunidade em Guadalupe, na Zona Norte carioca, foi o embrião para o projeto Cozinha Solidária, que nasceu para ampliar o acesso de comida às populações que estão sendo mais afetadas pela crise do novo coronavírus, em comunidades e bairros com grande quantidade de pessoas em situação de vulnerabilidade social.
"Sem uma alimentação saudável e digna, fica mais difícil ainda para elas sobreviver à pandemia", afirma David Hertz, fundador da Gastromotiva.
Milena concorda. Empreendedora de um pequeno negócio de alimentação há três anos, na qual prepara saladas de pote e comida congelada, ela sentiu as vendas caírem desde que os primeiros casos de coronavírus chegaram ao país. "Percebi que teriam pessoas muito mais afetadas do eu e resolvi agir", conta ela, que organiza suas ações através de um projeto social próprio, com cadastro de diversas famílias na comunidade da Palmeirinha.
"Desde que comecei com a Cozinha Solidária, no mês passado, tenho visto o trabalho impactar muito a vida das pessoas. Elas estão precisando muito. Há casas em que há 10 pessoas morando", conta ela. Os públicos-alvos são famílias, idosos, crianças e gestantes e pessoas em situação de rua.
Além das refeições, Milena se mobiliza para juntar kits de higiene e cestas básicas. "Esse mês [abril] já foram 600 marmitas com os alimentos vindos pela Gastromotiva", diz. Para a função, ela recebe uma ajuda de um salário mínimo por mês. "É um bom complemento nesses tempos. Se mais pessoas fizerem parte, elas terão uma renda extra e, juntos, conseguiríamos ajudar muito mais", salienta.
Ampliação era plano pré-pandemia
Hertz conta que há mais de um ano ele e sua equipe vêm se questionando junto a alunos e parceiros como ampliar o impacto social das atividades além dos cursos de empreendedorismo da ONG e dos jantares solidários no Refettorio Gastromotiva. "Queríamos multiplicar o número de atendimento de pessoas dentro das comunidades vulneráveis em que nossos alunos moram", acrescenta.
O projeto também surgiu como uma forma de ajudar os próprios alunos e ex-alunos, além de outras pessoas que estavam perdendo suas fontes de renda por causa da crise, ou ainda desempregadas ou impossibilitadas de trabalhar. Dentro de suas casas, respeitando os procedimentos de segurança alimentar e higiene exigidas pela atual situação, os cozinheiros solidários usam as cozinhas de suas casas para preparar as refeições entregues nas comunidades.
Eles precisam ter estrutura de armazenamento e produção, parcerias para distribuição e garantir o cumprimento de protocolos de segurança acordados no ato do cadastro. Os cozinheiros recebem os kits com insumos e as fichas técnicas (onde estão as quantidades exatas de cada receita), além das embalagens e outros itens necessários para a produção das refeições. As cozinhas podem ser de pequena, média ou grande capacidade, para fornecimento de 400, 800 e 1.600 marmitas por mês, respectivamente.
"Através das Cozinhas Solidárias, conseguimos fechar um ciclo de solidariedade que ajuda e empodera todos os envolvidos, desde quem vai produzir o alimento, até aquele que vai se alimentar de forma digna, ou mesmo quem doa, que sente que pode contribuir de alguma forma para melhorar a situação em que nos encontramos", afirma Hertz.
Rede nacional
Atualmente são seis cozinhas solidárias em operação entre o Rio de Janeiro, Curitiba e São Paulo. "Fizemos uma chamada pública entre os ex-alunos da Gastromotiva para saber quem estaria interessado em participar do projeto. Já temos 45 cozinheiros na fila de espera para colocar as suas cozinhas em ação", diz.
Também no Rio de Janeiro, uma das empreendedoras é Natália Rosa, que foi a primeira colaboradora do Reffetorio Gastromotiva, e que recentemente adaptou a sua casa para entregar marmitas a pessoas em situação de fome no Complexo do Chapadão. As favelas estão entre as regiões mais afetadas pelo coronavírus por no Brasil causa da alta densidade populacional.
O crescimento do número de Cozinheiros Solidários, explica Hertz, depende das doações de alimentos que já estão em negociação e da captação de recursos financeiros com indivíduos e empresas. A entidade tem a meta de atender 80 mil refeições por mês nas três cidades por hora — e aumentar para outras comunidades conforme novos cozinheiros integrarem.
O projeto, que surgiu da necessidade de se repensar novos modelos de atuação durante o período da covid-19 e do isolamento social, deve perdurar além da crise com mais impacto local dentro de comunidades e periferias. "Estimamos que 60% dessas cozinhas se tornem empreendimentos sociais e se autossustentem após a pandemia", ele prevê.
Isso porque Hertz acredita que a nossa sociedade vai sair dessa pandemia mais solidária, disposta a ajudar mais pessoas que precisam. "Até mesmo pessoas que não podem contribuir financeiramente nos procuram para ajudar de outras formas e temos feito muitas parcerias nesse período de crise", ele conta. "Nossas maioria de patrocínio e doações sempre veio do exterior. Agora, estamos gratos por serem de indivíduos e empresas nacionais. Ainda há espaço para muita gente se engajar e contribuir", diz.
O presidente da Gastromotiva agora tenta unir forças com outras ONGs, chefs que estão fazendo refeições enquanto seus restaurantes estão fechados e outras iniciativas para poder distribuir milhares de refeições por mês.
"Nos EUA, o chef José Andrés, do World Central Kitchen, já conseguiu em um mês atender três milhões de cidadãos. A comida tem um potencial em transformar as vidas das pessoas", ele conclui. As de quem come, mas principalmente as de quem cozinha.
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