Moda de negro e de branco? Estilistas querem romper este estigma
"A moda é encarada como algo superficial e muita gente esquece de ver o papel político que ela tem, porque a estética também é política. Quando a gente assume a nossa identidade ao nos vestirmos, levamos um discurso. E ele é extremamente importante, pois interfere no mundo de diversas formas".
É dessa forma que a comunicadora e estilista Tenka Dara Pinho Silva, empresária por trás da marca de roupas Baobá Brasil, define a mensagem que gostaria de passar com seu trabalho na moda.
"A roupa comunica", continua Tenka, em conversa com Nossa. "Se você escolhe usar uma roupa que te deixe igual a todo mundo, você fez uma opção. Já quando você escolhe uma que fala sobre si, da sua identidade, origem, alma, você afirma para o mundo essa identidade e contribui para a pluralidade".
Tenka criou a Baobá em 2006, em São Paulo, enquanto trabalhava como documentarista. Depois levou a marca até o Rio de Janeiro, em 2010. O trabalho feito por ela e já vestido por artistas como Elza Soares, Criolo e Vanessa da Mata é inspirado na cultura de Moçambique, em 2005, quando sua mãe se mudou para lá.
"Moçambique tem uma cultura de tecido muito importante", conta. "A capulana, como é chamado o tecido africano, é uma voz feminina. As mulheres se expressam por meio dele".
Inspirando-se em Goya Lopes, mas buscando uma proposta própria, a estilista desenvolveu seu trabalho com a moda afro-brasileira urbana a fim de ter diálogo com o mundo.
Pluralidade importa
"A moda afro-brasileira, como um todo, não é edificada, a história dela é apagada. Estamos construindo, abrindo a mata que é fechada no mercado. A moda afro ainda é um segmento a parte da moda, no geral", opina. "A forma de interferir nesse processo é um grande desafio. Nossa estética ainda é vista como algo folclórico ou secundário. A identidade brasileira é determinada pela presença negra — e isso precisa estar refletido no que a gente produz enquanto moda. O desafio é esse, imprimir uma marca em um cenário tão euro centrado e branco".
Não sei se tenho interesse em me incluir na moda brasileira, mas tenho desejo de interferir"
Tenka reforça que a moda precisa ser construída com todas as suas faces: "Espero um dia não precisar me intitular como afro criadora, mas ser só uma criadora de moda. A ideia não é criar uma moda para negros ou para brancos, é simplesmente criar moda".
Esse argumento é endossado pelo estilista Isaac Silva, dono da marca que leva o seu nome e já apresentou a coleção nove vezes na Casa de Criadores e na São Paulo Fashion Week.
Para todos, sem distinções
"A moda afro-brasileira é para todos", diz ao Nossa. "As pessoas brancas dizem que têm medo de usar estilistas negros, achando que é apropriação cultural. Isso não é apropriação, é um pensamento racista. A partir do momento que você compra algo de um estilista negro, você está contribuindo muito mais intelectualmente e financeiramente. Essa é uma maneira de ser antirracista".
Isaac teve o contato com a moda ainda criança na cidade de Barreiras, no interior da Bahia. Sempre próximo do ateliê de Morena, a "costureira do bairro", ele ganhou carinho e apreço pelas roupas, magia que refletiu na sua escolha pela profissão no futuro.
"Trabalhar na moda é doloroso, mas eu amo. Então, tento fazer esse trabalho que escolhi para a minha vida ser algo legal", diz. "Decidi criar minha marca para combater o preconceito racial. São roupas unissex, gosto de dialogar com diferentes tipos de corpos, em que todos homens e mulheres que tenham curvas e gordos encontrem roupas para vestir".
As marcas só vão sobreviver se falarem com o que é real. As que não falarem, não terão mais espaço"
O estilista, assim como Tenka, cita como inspiração para a base de sua carreira o nome de Goya Lopes, e relembra um estudo que fez sobre a moda afro-americana.
"Estudando, encontrei a história de Ann Loew, uma estilista afro-americana, que tinha um ateliê enorme e fez o vestido da Jack Kennedy. No entanto, na época, revistas como Vogue e Harper's Bazaar, não citaram o nome dela, só diziam que era uma costureira e estilista afro-americana. Com isso, fui vendo o apagamento da contribuição de pessoas negras na moda".
Muita coisa ainda não mudou, como aponta Isaac. A Prada colocou uma modelo negra para abrir seu desfile só em 2018, 20 anos depois de ter Naomi Campbell fazendo o mesmo: "O sistema por trás da moda é racista".
Esse sistema inclui a mídia, argumento usado pelo estilista Diego Gama, dono da marca que também leva o seu nome e abriu, antes mesmo de existir, o evento de 20 anos da Casa de Criadores.
"Acho que muitas vezes vem inclusive da mídia", aponta ele ao Nossa. "Converso com muitos outros estilistas pretos e só somos interessantes quando precisamos falar de negritude, porque isso só a gente pode falar. Mas quando é um assunto que qualquer um pode falar, não somos chamados".
Dos uniformes às passarelas
Diego é de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, e nasceu em uma família dentro do universo do basquete, o pai técnico e a mãe jogadora. Inicialmente, era esse mesmo caminho que ele iria seguir, embora a moda sempre estivesse presente.
"Minha mãe desenhava os uniformes do time dela e eu também acabei fazendo isso", relembra. "Quando precisei escolher que faculdade faria, acabei me interessando pela moda, porque era algo que eu já brincava. Quando era criança, minha brincadeira era fazer uniforme de papel para os meus brinquedos. No esporte, a gente sempre tem uma conexão muito forte com a roupa, porque o uniforme significa a união e o que se defende".
Enquanto crescia e se reconhecia como LGBTQ, o estilista decidiu deixar a carreira como atleta de lado por não encontrar essa representatividade no esporte, e cursou faculdade de moda em São Paulo. Aos 19 anos, começou a carreira e foi convidado por André Hidalgo para abrir o evento da Casa de Criadores.
"Muitos estilistas negros não têm estrutura logo de cara, enquanto pessoas brancas têm", opina ele, assumindo seus privilégios por ingressar em uma faculdade particular. "Quando você é branco, geralmente já tem um fonte de investimento, faz parte de um circulo social que vai consumir sua peça e uma mídia que vai te apoiar por estar fazendo exatamente o que é interessante para eles, a imagem clássica de moda de uma mulher branca e magra".
Diego levanta ainda a discussão de que, embora seu trabalho sempre venha carregado da estética negra, por ser algo intrínseco, o trabalho feito por ele é ainda mais amplo.
"Não é algo que eu penso, quem fala o tempo todo que eu sou negro são os brancos. Quando a gente precisa sofrer algum tipo de preconceito. Não é algo que pensamos toda hora, porque é indiferente", reforça. "Acho que é importante que a gente não se limite a um quadrado preto quando formos falar de pessoas pretas. Não se limite a comprar de preto só quando é uma pandemia. A gente está aí, sempre esteve aí e continuaremos a estar aqui".
As pessoas esperam o tempo todo que a gente espere fazer alguma coisa, a gente está fazendo nosso trabalho o tempo todo, e muito bem feito"
O estilita declara, por fim, que é impossível falar de moda brasileira sem levar em consideração tudo o que se constituiu no país, em sua maioria feito pessoas negras e indígenas.
"Na moda, é muito fácil que taxem o estilista negro como militante", opina. "É como se a indústria desse esse espaço e dissesse: 'esse é o seu lugar, só pode falar sobre isso'. Já coloquei peruca colorida em um desfile e disseram que era um turbante. Mas por que um turbante? Por que a modelo era preta? Ou eu sou preto? Não era nem perto de um turbante. Todas as leituras estão sempre ligadas a sermos pretos. Existe um double standard sobre como os estilos são vistos. O julgamento feito é de que se um branco é experimental, ele é genial, enquanto o preto não sabe fazer as coisas".
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