Como os restaurantes estão reabrindo ao redor do mundo após a pandemia
À medida que os países começam a relaxar o confinamento de seus cidadãos, os comércios e serviços retomam gradativamente as suas atividades. Em muitos deles, a estratégia é faseada, para evitar que os números de contaminações pelo coronavírus voltem a subir. Primeiro vêm os cabeleireiros, pequenos comércios de rua, depois padarias, floriculturas e, por último, os lugares com maior concentração de gente.
A reabertura dos restaurantes costuma estar entre as últimas fases por sua natureza de congregação, por sobreviverem de reunir as pessoas em torno da mesa. Justamente por isso, esses estabelecimentos são um dos símbolos de "nova normalidade" em muitas cidades, uma feliz contestação que tudo está, enfim, voltando aos trilhos.
Normal? Longe disso
Pelo menos aparentemente, já que se trata de um dos setores mais afetados pela pandemia. Mesmo com a reabertura, muitos ainda enfrentam imposições de seus representantes de saúde, como distância mínima entre mesas, uso de máscaras por toda a equipe, estratégias de sanitização de louças e talheres.
Isso, segundo donos de restaurantes, ainda evoca alguma desconfiança dos clientes, que são confrontados de novo com a ideia da doença quando resolvem sair para jantar. Segundo estimativas dos países que já abriram, as primeiras semanas têm sido de cerca de 30% a 40% de ocupação.
Mas mesmo diante de todas essas dificuldades, a possibilidade de reabrir significa algum alívio para os profissionais do setor, que tentam encontrar os melhores caminhos diante de um novo e inédito cenário que ainda está se desenhando.
Nossa conversou com três chefs em locais tão distintos quanto Singapura, Portugal e Dinamarca para saber como foi a retomada das atividades — e o que eles esperam para o futuro.
António Galapito, do Prado, em Lisboa (Portugal)
Um dos mais concorridos restaurantes da nova e efervescente cena gastronômica da capital portuguesa, o Prado fica em uma ruela na Baixa e tem a frente o jovem chef António Galapito. Expoente de uma nova geração de cozinheiros do país, ele faz uma cozinha com inspiração global com foco nos produtos portugueses.
Quando o governo português decretou o estado de emergência, em 18 de março, o restaurante já estava fechado há alguns dias "como medida de prevenção". Em Portugal, a sociedade em geral se adiantou às eficiências de distanciamento social para preservar a população, especialmente os mais idosos.
Durante o hiato de dez semanas, Galapito decidiu abraçar estratégias de delivery e de takeaway para manter algum faturamento em caixa. Também começou uma entrega de cestas de produtos aos clientes, como vegetais orgânicos de fornecedores, pães e outros preparos feitos no restaurante para utilizar o estoque que tinha ficado parado.
No final de maio, porém, com o relaxamento das medidas de confinamento, voltou a abrir as portas em uma quinta-feira, seguindo um novo horário de funcionamento. Se antes o Prado fazia cinco jantares e quatro almoços por semana, agora a ideia é fazer apenas três serviços a noite semanalmente "para sentir como as coisas vão evoluir", como diz Galapito.
"Eu quis abrir logo, para as pessoas voltarem a se habituar a saírem de casa, tentar trazer alguma ideia de normalidade", conta.
Galapito se diz aliviado de voltar a cozinhar para as pessoas, e feliz com o retorno dos clientes que têm aparecido. A dinâmica, conta, mudou pouco. Exceto pelos cuidados a mais do serviço de salão.
Embora já não exista mais obrigação sobre a capacidade de atendimento, por exigências da Direção Geral de Saúde portuguesa, os restaurantes precisam respeitar dois metros de distância entre as mesas e os funcionários precisam usar máscara durante todo o serviço. "Não é fácil trabalhar mais de seis horas direto com isto na cara, mas é como tem que ser agora", diz o chef.
Os clientes também são obrigados a usá-las para entrar nos espaços e só podem retirar quando se sentam. Na mesa é que os garçons montam os talheres e pratos, que antes já ficavam sobre elas, o que agilizava muito o serviço dos garçons.
A equipe foi reduzida — cinco funcionários continuam em casa pelo sistema de layoff — frente à redução dos clientes. A nova configuração do salão diminuiu a quase 50% a capacidade do restaurante, algo que se refletiu também no menu, que ficou mais enxuto: de 22 pratos foi para 9, exceto as sobremesas.
"Os três dias abertos representam em faturamento uma noite de jantar nas semanas normais pré-pandemia. Mas já é muito mais do que estávamos fazendo só com as encomendas", conta Galapito. O desafio agora é manter o público cativo e atrair o interesse de novos clientes locais. "Cerca de 60% do que tínhamos era de turistas. O restante era composto por portugueses ou estrangeiros que moram aqui", estima.
Embora os turistas já possam começar a voltar a partir de julho, quando as fronteiras se abrem com a Espanha e depois os voos passam a chegar da Europa, o chef acredita que o fluxo vai levar muito tempo para ser como antes. Especialmente em Lisboa, que nos últimos anos vinha registrando recordes de turistas.
"Seguimos a fazer nosso trabalho, comprar dos produtores portugueses, cozinhar com o mesmo afinco e esperar que os clientes venham, de uma forma ou de outra", conclui Galapito.
Chef Rasmus Kofoed, do Angelika, em Copenhagen (Dinamarca)
Nos últimos anos, Copenhague se transformou em um epicentro da gastronomia mundial, com conceitos inovadores, propostas criativas, chefs se voltando para os ingredientes locais, criando uma forte corrente da culinária nórdica.
Um dos responsáveis foi o chef dinamarquês René Redzepi, que mudou o panorama e alcançou o panteão da alta gastronomia com o Noma, eleito por três anos o melhor restaurante do mundo. Mesmo com menor projeção, outros chefs ajudaram a consolidar a comida da região. Um deles é Rasmus Kofoed, que está a frente de um dos mais importantes expoentes da capital dinamarquesa, o Geranium.
Quando em março a primeira-ministra dinamarquesa determinou que os comércios e serviços deveriam fechar as portas frente aos avanços do coronavírus, as comemorações pelo aniversário de 20 anos do restaurante e pela recente conquista das tão esperadas três estrelas Michelin ainda estavam a mil. Foi um baque e tanto.
Nesse tempo para repensar como iria voltar com o projeto no qual vinha se dedicando na última década, Kofoed resolveu dar a luz a uma ideia que há muito tempo vinha martelando sua cabeça: a de abrir um restaurante plant-based (que é um nome mais pomposo para vegetariano), em plena pandemia.
Mais casual e espontâneo que seu irmão mais velho (com preços de 90 euros pelo menu-degustação), o Angelika, que abriu as portas oficialmente no último dia 4, tem como foco refeições saudáveis e saborosas, e é um projeto temporário — que o chef não sabe quanto deve durar. O nome da nova empreitada é uma saudação a sua mãe, Gerd Angelika, que o ensinou a amar vegetais e é uma de suas maiores inspirações.
A ideia ganhou forma nas últimas semanas, quando ele e sua família se isolaram na remota ilha dinamarquesa de Samsø, onde o chef passou mais tempo cozinhando com os filhos e se lembrando das receitas que aprendeu com a mãe.
"Não há dúvida de que o bloqueio causado pelo coronavírus contribuiu para a abertura do Angelika. Era um sonho antigo criar um restaurante vegetariano mais acessível. Mas também se tornou uma ótima maneira de manter nossos funcionários", diz Kofoed, que diz prever que o fluxo de clientes do Geranium deve cair nos próximos meses, o que o obrigaria a demitir parte da equipe.
O Geranium, que também já reabriu, passa a funcionar apenas aos jantares de quarta a sábado, enquanto o Angelika abre apenas aos almoços de quinta a sábado, substituindo os almoços no Geranium. O chef diz que tudo isso está sujeito a alterações, já que nenhum de nós sabe o que o futuro reserva, e as fronteiras ainda estão fechadas.
Por isso, o público da abertura era todo de locais. "Eu ainda estava muito focado, mas também tive tempo de conversar com os convidados e trazer pratos para a mesa", diz ele, que admite que estava apreensivo com a retomada, mesmo considerando que Dinamarca esteve entre os primeiros países europeus que decretaram uma paralisação generalizada dos serviços e, por isso, teve uma das respostas mais contidas da Europa
"Eu não estava ansioso, mas quando você abre algo completamente diferente, não é fácil. Você está definitivamente fora da sua zona de conforto", diz.
Soma-se a isso o fato de estarmos em plena pandemia mundial da covid-19. Kofoed conta que vê com esperança o futuro para os restaurantes de seu país.
Razões para um otimismo ele tem. Atualmente, o Angelika já está com a capacidade esgotada até agosto. Algo que Kofoed diz não poder imaginar "nem nos meus melhores sonhos". "Foi uma ótima atmosfera, recebemos um feedback muito bom. Era mais do que eu poderia pedir", conclui.
Chef Ivan Brehm, do Nouri, em Singapura
Ivan Brehm é um brasileiro a frente de um dos mais renomados restaurantes de Singapura. O Nouri é um restaurante estrelado no Guia Michelin que faz uma cozinha de "crossroads", como bem define o chef, em alusão a seu caráter multicultural, por assim dizer.
Quando a pandemia do novo coronavírus teve seu início na China e passou a afetar outros países asiáticos próximos, o governo de Singapura entrou em ação para controlar a propagação das contaminações, o que teve (pelo menos no princípio) um efeito imprescindível para os bons resultados que o país teve.
Assim como em outros lugares, os restaurantes fecharam, mas o governo entrou com uma ajuda financeira para não colapsar a economia local — assumiu o pagamento de 75% das folhas e ajudou com outros custos. "As coisas estão funcionando bem, é uma nação muito rica, existe uma estabilidade financeira", conta Brehm.
Desde que foi obrigado a fechar as portas, o chef passou a criar diversas ações para o negócio seguir funcionamento mesmo com as imposições de distanciamento social. Passou a fazer delivery, criou opções de takeaway, uniu-se a fazendeiros e outros cozinheiros para vender vegetais e comidas prontas para os clientes. A saída foi inovar.
"Desde então, a gente tem se dado bem suficientemente bem para pagar as contas. Lucro, por hora, nem pensar", conta o chef. O Nouri abriu uma plataforma online para as vendas serem mais fáceis e acessíveis. "Temos muitos pedidos com muitas variáveis, o que passou a ocupar a equipe toda. Algumas pessoas da cozinha e da sala se transformaram em motoristas para as entregas", explica.
O restaurante estabeleceu uma parceria com uma fazenda local para vender cestas de alimentos (de 3kg e 6kg) com os melhores vegetais de cada semana. "Logo que os mercados fecharam, sabíamos que eles iam sofrer e propusemos a parceria. Temos vendido de 40 a 60 cestas por semana, o que é um número muito bom", conta Brehm.
Para ele, a pandemia serviu para as pessoas aprenderam a cozinhar mais em casa, se dedicar às suas refeições. "Mas acho que o primeiro mês foi mais produtivo, elas começaram a se cansar. Também foi o tempo para entender a nova dinâmica da casa e pensar como tornar as tarefas mais fáceis", ele diz.
Por isso, o chef também criou uma outra contribuição com um pastifício local, o Ben Fatto, para vender a massa produzida por eles com molhos que passaram a fazer no restaurante. "É uma comida fácil de fazer, que todo mundo quer ter na geladeira", diz.
Mesmo que haja muitos mercados que tenham voltado a funcionar e que restaurantes tenham já reaberto em toda Ásia, inclusive em Singapura, o Nouri permanece sem receber os clientes in loco. "Estamos programando para o final de junho, ou começo de julho", diz.
Embora acredite que a pandemia afete os países de uma maneira bastante parecida — com imposição de quarentenas e lockdowns, e uma recessão na economia —, Brehm defende que o impacto é regionalizado. "O contexto de Singapura é muito diferente do do Brasil", afirma.
Ele defende que os restaurantes que souberem criar uma ligação direta com seus clientes, que tiverem como foco sua comunidade, vão conseguir sobreviver muito melhor. "Aqueles que só focam no 'business' deverão aprender a trancos e barrancos", diz.
O chef também diz ter sérias resistências quando escuta chefs que falarem que tudo vai mudar completamente, que os restaurantes nunca mais serão os mesmos. "Eles não sabem, ninguém sabe. E a verdade é que a gente já não sabia antes da covid-19", diz.
"A pandemia veio mostrar que tudo o que a gente achava que era verdade não é bem assim".
Para ele, o restaurante sempre teve e sempre terá um papel muito significativo na sociedade. "É uma cola social, pois tem a função crucial não apenas de alimentar bem, mas também como cultura, de unir com as pessoas", conclui.
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