Moradores de destinos turísticos superlotados têm respiro durante pandemia
Se ver as ruas do Marais (Paris), o entorno do Coliseu (Roma), os canais de Veneza ou os arredores da Sagrada Família (Barcelona) sem os turistas que as lotavam antes da pandemia do coronavírus gera desconforto, para os moradores de importantes centros turísticos europeus este momento representa também, pela primeira vez, o alívio de um outro problema enfrentado há muito tempo: o overtourism.
"Moro aqui há tantos anos e estou enfim conhecendo melhor a minha cidade e os meus vizinhos, que antes eram apenas um rosto na multidão", diz Andrea Tizzi, de Veneza, cidade ameaçada pela inundação de turistas em excesso quase tanto quando o aumento do nível de suas águas. "É como se a cidade fosse finalmente nossa".
Também na Itália, o jornalista Carlos Marcondes vive em Brescia, na Lombardia, que fica a apenas 25 minutos do Lago di Garda, que também sofre todos os anos com o turismo excessivo.
"A expectativa de ter uma invasão menor de turistas estrangeiros neste verão tem agradado os italianos. Algumas medidas podem desestimular bastante o turismo em excesso, como os ferries para as ilhas circulando com cerca de 1/3 da capacidade, ou a necessidade de marcar pela internet para ficar na praia, com cadeira e guarda-sol", espera Marcondes.
"A região de Brescia é uma das mais poluídas da Itália e a diminuição dos níveis de poluição na quarentena fez também muita diferença, dá para sentir", diz Carlos. "Isso sem contar as mudanças comportamentais.
Quando começamos o processo de abertura, a população local, que sempre teve fama de fechada, reservada, passou a prestar mais atenção nos vizinhos e a se relacionar mais", diz.
No ano passado, nove milhões de turistas visitaram Amsterdã, cuja população é de pouco mais de 800 mil habitantes. Mas desde março, diante do semi-lockdown na cidade, o histórico Red Light District, por exemplo, foi visitado pela primeira vez por alguns moradores - vazio e absolutamente silencioso.
"O Centro Antigo de Amsterdã parece outra cidade desde o começo da quarentena", diz Erik Sadao, da Sapiens Travel, que mora há alguns anos na cidade holandesa. "Gostei muito de explorar a região do Rio Ij durante a quarentena. Programas simples como este reforçaram meu senso de pertencimento e afetivo com a cidade".
Barcelona é outro exemplo similar: visitada por cerca de 30 milhões de turistas todos os anos, mais de 3 milhões deles são turistas de um dia, que chegam em passeios bate-e-volta ou cruzeiros e mal consomem na cidade.
Apesar de representarem quase um quinto do setor comercial da cidade, muitos de seus 1,6 milhões de habitantes não conseguem deixar de lamentar todos os efeitos negativos do turismo massificado no dia a dia.
"É claro que o impacto econômico de não haver turistas é brutal; o turismo é a principal atividade econômica da Espanha e de Barcelona, e aqui muita gente depende disso. Mas não dá para negar a delícia de curtir a cidade sem essa sensação de que tudo está tomado pelo turismo", diz Gabriela Righetto.
"Eu moro em uma parte bem central da cidade e, agora, na reabertura, admito que caminhar por aqui sem desviar constantemente de turistas dá um certo alívio. Porque Barcelona é uma cidade de pequenas dimensões e muitas vezes tínhamos a sensação de que os turistas estão mesmo por todos os lados", diz.
Gabriela conta que foi justamente neste período que caminhou algumas vezes pelas famosas Ramblas. "É uma área que eu geralmente evito, nunca vou, justamente pelo excesso de gente, comércio e restaurantes voltados para turistas, batedores de carteira. Com elas vazias, parecia que eu estava descobrindo um lugar novo, com espaço para caminhar, e consegui ver a beleza de um lugar que nunca tinha me parecido bonito até então", conta.
Viver de turismo - mas com equilíbrio
A situação virou um grande paradoxo: cidades que "quebram" sem turistas mas que também podem "quebrar" com o excesso deles. Em uma cidade cuja economia é sustentada majoritariamente por hotéis, bares, restaurantes e lojas, estes meses têm sido mesmo extremamente preocupantes, ainda mais sem saber quando exatamente os turistas voltarão de fato à cidade.
Criar maneiras de controlar o excesso de turistas na cidade, que já era tema de muitos debates locais desde antes da pandemia, pode ter soluções e políticas criadas para um futuro mais breve.
"Acho que moradores e até mesmo turistas poderiam se beneficiar de uma cidade menos dominada por um turismo massivo. Apartamentos que antes eram alugados somente para a temporada ficaram vazios nestes meses e já estão voltando para o mercado regular de aluguel; há maior oferta e uma carta diminuição nos valores", afirma Gabriela.
O pensamento é compartilhado por Marianna D'amore, de Lisboa. "O turismo nos traz alegria e movimento, mas pode descaracterizar traços importantes da vida portuguesa; vemos isso claramente quando chega o verão. Medidas de contenção de overtourism beneficiariam também a questão da moradia e da produção excessiva de lixo e resíduos", diz.
"São sentimentos ambíguos. Depois de 45 dias sem sair de casa, resolvi ver Lisboa e a cidade estava linda! Mas havia também um impacto triste em ver tudo vazio, principalmente lugares turísticos como Chiado, Miradouro da Graça e ruas da Alfama", conta.
Mariana Bernardes, que vive me Paris com o marido e a filha, conta que tem aproveitado tudo extremamente vazio: "Fizemos um piquenique excelente no Trocadéro, que normalmente nem é um lugar simpático para tal. E em Montmartre foi a glória: sem turistas, tudo calmo, deu para aproveitar cada cantinho. No fundo, estamos torcendo para que os turistas demorem um pouquinho mais para chegar para podermos aproveitar mais a cidade", confidencia.
Já Heloísa Righetto, em Londres, aproveita os arredores de onde vive há dez anos. "Durante a quarentena, a cidade ficou resumida ao meu bairro para mim. Descobri um lugar a 400 metros de onde moro e hoje caminho quase todos os dias por ali", conta.
Pandemia como momento de reflexão
Nos últimos anos, muitos destinos europeus começaram a adotar algumas políticas mais sérias para conter o turismo de massa, inclusive banindo de vez os imóveis de temporada e lojas focadas unicamente em turistas em alguns de seus bairros e buscando restaurar o equilíbrio entre moradores e visitantes de maneira favorável aos primeiros.
Lisboa já vinha adotando medidas de contenção turística na cidade, como controle de inscrições de Alojamento Local em alguns bairros e projetos urbanísticos como o fechamento da região do Rossio/Baixa para veículos - e a discussão se intensificou ainda mais nos últimos meses.
"Amsterdã é uma das cidades mais pragmáticas neste sentido, com restrições ao Airbnb e alteração de pontos turísticos estratégicos para garantir o bom fluxo", diz Erik Sadao. "O mais interessante do pós-quarentena é a autorização que a prefeitura local concedeu a bares e restaurantes para utilização de áreas públicas como praças, margens de canais etc. para a instalação de mesas. Algumas ruas estão sendo fechadas de vez para carros e se tornando zonas de pedestres e/ou de bicicletas".
A República Tcheca e a cidade de Praga estão aproveitando estes meses para regulamentar imóveis de temporada e reduzir ou proibir negócios turísticos fora da cultura local. Gabriel Britto, que mora na cidade, diz ter passado a amar a cidade e o país ainda mais pela segurança que o governo transmitiu na pandemia.
"A Ponte Carlos, o Castelo de Praga e a Praça da Cidade Velha não estão vazios, mas demoram mais para ficarem cheios, então não é preciso chegar tão cedo para ter tudo quase só para você", completa.
Vale lembrar que o turismo, uma das indústrias mais afetadas pela pandemia no mundo, é também uma das indústrias mais resilientes - vide exemplos anteriores, como o pós-11 de setembro e os ataques terroristas em Bali, que desencadearam recordes de visitação nos anos subsequentes. Resta saber o que vem por aí após a covid-19.
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