A incrível história do primeiro brasileiro a cruzar as Américas a cavalo
Esta é uma história fantástica sobre um cavaleiro solitário que cruzou as Américas com três cavalos, encarou urso pardo, dormiu na casa de um narcotraficante e aprendeu a não se preocupar com a ponte antes de chegar nela.
Conhecido como o "Cavaleiro das Américas", Filipe Masetti Leite, de 33 anos, concluiu no último mês de julho uma travessia a cavalo de 27 mil quilômetros, entre o Alasca, nos Estados Unidos, e Ushuaia, no extremo sul do continente.
A cavalgada de 30 quilômetros diários, a 4 km/h, começou em julho de 2012 e só terminou oito anos depois, garantindo a esse viajante de Espírito Santo do Pinhal, no interior paulista, o título de "o primeiro brasileiro a percorrer a América a cavalo".
Filipe viajou em cavalos selvagens no extremo norte do continente, enfrentou um dos verões mais quentes dos Estados Unidos e atravessou o Deserto de Chihuahua, no México. Mas a primeira montanha que teve que escalar foi convencer parentes e patrocinadores que o então recém-formado de 23 anos seria capaz de cruzar o continente cavalgando.
Eu não tinha sequer uma ferradura para poder viver essa experiência"
Por uma questão de planejamento estratégico e com o desejo de ir mais longe a cada trecho vencido, a viagem foi fracionada em três etapas.
Os trechos da aventura
Na primeira, foram 16 mil quilômetros vencidos em 803 dias de cavalgada por 10 países, entre Calgary, no Canadá, e Barretos, em plena Festa do Peão. A experiência rendeu não só o livro "Cavaleiro das Américas" (ed. HarperCollins), mas também uma estátua em sua homenagem na cidade paulista dos rodeios.
De São Paulo, Filipe seguiu a jornada até o Ushuaia, na Argentina, uma viagem de 7,5 mil quilômetros com ventos de 120 km/h, em uma Patagônia inóspita e de temperaturas que chegaram a 16 graus negativos.
"Quase perdi os dedos, mas ganhei meu maior presente em El Bolsón, minha atual noiva Clara, que chegou a acompanhá-lo nos 3,5 mil quilômetros da terceira e última etapa, entre Fairbanks, no Alasca, e o Canadá.
Até então, sua companhia se resumia aos três cavalos que o acompanharam e se revezavam para que cada um tivesse um dia sem ser montado nem ter que carregar a bagagem. No total, Filipe chegou a viajar com 11 cavalos de três raças diferentes (crioulo, quarto de milha e os mustangues emprestados pelos índios Osoyoos, no Canadá).
Solitário e persistente, cruzou a Cidade do México cavalgando, beirou abismos e sentiu o vento de caminhões passando ao seu lado a 120 km/h. Mas durante toda a viagem, os maiores cuidados eram sempre com seus acompanhantes equestres.
Tem que ser um cavalo com boa cabeça, mais jovem e resistente, não importa a raça"
Brasileiro com pimenta
Mais do que cenário perfeito para filmes em estradas áridas da América do Norte, o cavaleiro paulista viveu um perrengue por dia. "Não era para eu estar vivo hoje. Quase todo dia deu vontade de desistir", lembra.
Uma das preocupações eram os encontros constantes com ursos de Montana e do Alasca.
O urso é um animal assustador que pesa mais do que um touro de rodeio, escala árvores e corre a cerca de 80 km/h"
Por isso, seus três cavalos passavam a noite com sinos no pescoço para alertá-lo sobre possíveis aproximações e, impossibilitado de portar armas, Filipe carregava com ele um spray de pimenta. Na cavalgada entre o Alasca e o Canadá, por exemplo, o novo normal na rotina de Filipe era dar de cara com, pelo menos, três ursos por dia.
"No caso de um ataque, não tinha muito o que fazer. Seria um urso comendo um brasileiro apimentado", ironiza, lembrando que também chegou a encontrar alces e manada de búfalos.
A vida selvagem lhe causou tanto encanto e temor (não necessariamente nessa mesma ordem) assim como as pessoas que cruzaram seu caminho.
Na conflituosa América Central, passou momentos difíceis onde o senhor que o hospedou tentou assassinar a própria esposa com cinco tiros, uma experiência que, segundo Filipe, lhe causa pesadelos até hoje.
Por ali teve problemas burocráticos para cruzar fronteiras com os cavalos, entrou ilegalmente em alguns territórios e viu crianças de nove anos portando pistolas.
"Entrei num episódio de Narcos", conta Filipe, lembrando os "olhos opacos, cheios de muita maldade" de narcotraficantes que encontrou durante a viagem.
Um deles inclusive chegou a hospedar Filipe e o pai, no minúsculo povoado de Potrero del Llano, no Estado de Chihuahua, no México.
Para evitar a intransponível Região de .Darién, a divisão natural e selvagem entre as Américas Central e do Sul, e com a leis sanitárias que impediam a entrada animal em países vizinhos, os cavalos tiveram que ir de avião de San José, na Costa Rica, até Lima, capital peruana. "A viagem quase terminou ali por causa da burocracia", conta.
Mas depois de nadar rios e escalar montanhas, os cavalos Frenchie, Bruiser e Dude também voaram!"
Porém, mais do que realizar um velho sonho de criança, alimentado pelas histórias que o pai contava sobre o explorador suíço Aimé Tschiffely, Filipe tinha uma causa.
Seu trecho até o Ushuaia, que seria incluído após a conclusão da primeira etapa, foi para arrecadar R$ 60 mil em prol do Hospital de Amor de Barretos, onde é voluntário, e alertar sobre o diagnóstico precoce do câncer juvenil.
Com a última travessia concluída, o cavaleiro está escrevendo seu terceiro livro sobre a experiência, deve ganhar um longa baseado em sua história e deixou o primeiro par de botas da viagem no Bata Shoe, museu com acervo dedicado aos calçados, em Toronto.
Sua viagem ficou materializada também na forma de duas estátuas que foram erguidas em sua homenagem, no Parque do Peão de Barretos e no Parque de Exposição de Londrina.
Pandemia
Mais do que ver paisagens inóspitas do continente, em anos de total isolamento no interior do continente, Filipe se preparou para o que viria pela frente: o coronavírus.
Essa viagem me ensinou a focar no hoje, a ter paciência e não perder a cabeça pensando no amanhã. Isso me ensinou a não me preocupar com a ponte até chegar nela"
É o que ele tem feito nesses dias, preso em Toronto, impossibilitado de voltar para o Brasil por conta da pandemia.
E se o cavaleiro ainda não sabe quando nem como deve conseguir retornar para casa, pelo menos o caminho de volta (a cavalo) ele já conhece.
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