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O lado obscuro das "cozinhas fantasma", voltadas apenas para o delivery

As chamadas "dark kitchens" são alternativa para redes de restaurantes e pequenos empresários; mas algumas atuam na informalidade - Getty Images
As chamadas "dark kitchens" são alternativa para redes de restaurantes e pequenos empresários; mas algumas atuam na informalidade
Imagem: Getty Images

Rafael Tonon

Colaboração para Nossa

18/08/2020 04h00

É um restaurante que funciona como outro qualquer, mas sem garçons e sem clientes. Quando as dark kitchens — ou ghost kitchens — surgiram há cerca de cinco anos, muita gente não conseguia entender bem o seu conceito.

Mas são, em linhas gerais, cozinhas voltadas única e exclusivamente para o delivery: a comida é entregue na garupa das motos, não pelas mãos dos atendentes.

A pandemia do novo coronavírus fez a crescente tendência se intensificar: no conforto de suas casas, a uma distância mais segura de outras pessoas, as pessoas conseguem ter refeições livres da possibilidade de contaminação.

As cozinhas fantasmas, ou instalações que produzem alimentos apenas para entrega sem áreas de refeições ou voltadas para o cliente, podem criar um mercado de US$ 1 trilhão até 2030, de acordo o Euromonitor.

A empresa de consultoria prevê que entregas mais baratas, rápidas e confiáveis possam ajudar esse segmento a capturar 50% do serviço drive-thru (US$ 75 bilhões), 50% do serviço de comida para viagem (US $ 250 bilhões) e 35% das refeições prontas (US $ 40 bilhões).

dark kitchen - Getty Images - Getty Images
As cozinhas fantasma, com foco em delivery, podem criar um mercado de US$ 1 trilhão até 2030, segundo estudo
Imagem: Getty Images

Ainda podem ganhar para si uma fatia do mercado dos ingredientes de cozinha embalados (30%) e do serviço de refeições (25%). Ou seja, é um mercado realmente promissor: para os empreendedores, é mais fácil concentrar tudo num mesmo lugar, sem ter que pensar na demanda de clientes.

Fantasmas camaradas

A pizzaria Bráz, em São Paulo, entrou no movimento desde 2001, quando centralizou parte de suas entregas na cidade em uma cozinha criada apenas para produção.

braz pizzaria - Divulgação - Divulgação
A Bráz Pizzaria foi uma das precursoras na dark kitchen, modelo que adota desde 2001
Imagem: Divulgação

Hoje, são duas cozinhas fantasmas — uma em Pinheiros e outra em Moema — que preparam receitas de duas marcas do grupo, a Bráz e a Bráz Elettrica.

"Na pandemia, o volume de produção dessas unidades dobrou", afirma Ricardo Garrido, um dos sócios-fundadores da Companhia Tradicional, grupo da qual a Bráz faz parte.

Durante a pandemia, com o atendimento ao público restrito em um primeiro momento, e reduzido agora, o grupo passou a adotar estratégias semelhantes para outras marcas.

"Estamos fazendo delivery que envolve a ICI Brasserie e o Astor que pode ser entendido quase como uma 'semi-dark kitchen'", explica Garrido.

Na cozinha da ICI Brasserie nos Jardins, eles entregam pratos do Astor, e no Astor da Vila Madalena também fazem entregas do menu da ICI Brasserie.

É uma forma de otimizar trabalho e equipes"
Ricardo Garrido

Mas restaurantes bem estabelecidos no mercado, como o Astor e a ICI Brasserie, viram a concorrência aumentar significativamente durante os meses de confinamento.

Terreno obscuro

O mercado de delivery viu surgir dezenas de projetos criados especificamente durante e para a pandemia, que passaram a inundar os aplicativos de entrega diariamente.

Um reflexo da popularização dessas plataformas e de uma busca pela subsistência em tempos que empregos foram cortados e a economia sofre uma grande crise mundial.

cozinhas fantasmas - Divulgação - Divulgação
As "cozinhas fantasma" existem apenas no mundo digital e não têm fachada física para o cliente
Imagem: Divulgação

"O problema não é a competição, mas o fato de ela ser injusta. Como donos de restaurantes, estamos sujeitos a impostos e regulações que muitos desses projetos ignoram", diz Alex, nome fictício, dono de uma churrascaria que prefere ter sua identidade preservada. E ele pergunta:

Não penso apenas no mercado, que está difícil para todos nós, mas especialmente no consumidor: em tempos que a segurança alimentar está ainda mais em jogo com o novo vírus, quais cuidados de higiene essas cozinhas têm? Quem fiscaliza isso?"

De fato, o movimento dos restaurantes virtuais se tornou tão rápido (desde que surgiu em Londres) que não há legislações próprias para esses restaurantes virtuais: por não serem espaços para clientes, não se enquadram nas leis existentes.

"Não existe uma categoria específica para eles, mas são considerados serviços de alimentação com modalidade apenas delivery", explica Dafné Didier, consultor em alimentos especialista em legislação sanitária.

Na maioria dos casos, esses negócios devem seguir as mesmas regras para restaurantes e afins.

É como qualquer outro serviço de alimentação, que dependendo da complexidade do que será servido, necessita cumprir todas as regras de produção já previstas pela Anvisa"
Dafné Didier

Caça-fantasmas

Enquanto os aplicativos parecem investir cada vez mais em cozinhas fantasmas — alguns deles ajudam os empreendedores a criar seus conceitos mais focados a demandas reais ou até com estrutura física —, o mercado se organiza para tentar combater a ilegalidade que eles representam.

cozinhas fantasma - Getty Images - Getty Images
Órgãos do setor de alimentação trabalham para regularizar o sistema de "ghost kitchens"
Imagem: Getty Images

Sindicatos espalhados pelo país, como o Sehal (Sindicato das Empresas de Hospedagem e Alimentação do Grande ABC) e o SindRio, defendem que esses estabelecimentos devem ser devidamente regularizados.

"Nosso ponto de vista não é contrário a esse tipo de projeto. Apenas pedimos que sejam formalizados. Não só como restaurantes: há a possibilidade de esses empreendedores se configurarem como MEI ou outras atividades", explica Fernando Blower, presidente do SindRio.

Blower diz que o posicionamento do sindicato é que esses negócios existam perante o "mundo jurídico e possam ser fiscalizados igual a todo mundo".

"Há food trucks, quiosques e até dark kitchens que são associados ao SindRio. Estamos abertos, desde que sejam formalizados e solicitem licenciamento sanitário", afirma.

Transparente, mas não invisível

Para os estabelecimentos, existir apenas digitalmente também pode se tornar um desafio: primeiro porque não é fácil manter a marca atrativa e, segundo, porque sofrem com a crise de confiança que tomou o mercado em tempos de pandemia.

"Com o que estamos vivendo, acho que a transparência é algo fundamental, os clientes querem saber de onde vem o que o ele come", acredita o chef Raphael Despirite, um dos fundadores da Suflex, uma startup de soluções de gestão para bares e restaurantes.

As dark kitchens no escuro não funcionam nesse sentido de transparência. Elas talvez precisem se adaptar e ser mais claras sobre seus processos e formas de manipulação"

Despirite defende que o uso de câmeras de vídeo poderia ser algo interessante nesse sentido.

Jefferson Rueda - Lucas Lima/UOL - Lucas Lima/UOL
O chef Jefferson Rueda acaba de estrear sua "cozinha transparente", para centralizar os pedidos de delivery
Imagem: Lucas Lima/UOL

O chef Jefferson Rueda, que acaba de alugar um novo espaço no Centro de São Paulo para centralizar as refeições para entrega de suas casas, como o Bar da Dona Onça e A Casa do Porco, batizou o imóvel de "cozinha transparente".

Com janelas para a rua, quer que o público possa ver como eles produzem a cozinha desde o princípio até ela sair para entrega. "Aqui não tem nada de dark, é claro mesmo pra todo mundo ver", brinca.