Presos no paraíso? Viagem de 3 dias se tornou uma quarentena em ilha remota
Quando a publicitária brasileira Bianca Carminati, 34, e o fotógrafo norte-americano Eduardo Garcia-Rivera, 45, subiram, no dia 15 de março, em um barco que os levaria de Ubud, na Indonésia, até a ilha de Gili Meno, eles esperavam passar três dias naquele paraíso, destino de muita gente em lua de mel.
A pandemia de covid-19, infecção causada pelo novo coronavírus, fez, no entanto, que a estadia se tornasse uma quarentena de mais de cinco meses. "Foi uma loucura entender que estou passando por essa situação horrível em um lugar tão bonito. Porque o que estou vivendo é uma coisa maluca, mas também muito lindo", diz Bianca em entrevista por telefone a Nossa.
Antes de se tornar uma habitante provisória de Gili Meno, Bianca trabalhava com estratégia de conteúdo no Twitter até o fim do ano passado, quando decidiu que largaria o emprego e tiraria um ano sabático.
"Era a primeira vez que eu estava tranquila, que não tinha dívidas para pagar e percebi que poderia me organizar para passar um ano viajando e fazendo trabalho solidário em países africanos, o que sempre quis fazer", fala a publicitária.
Ela entregou o apartamento onde morava, começou a vender tudo o que tinha para juntar dinheiro para passar mais de um ano passeando pelo Sudeste asiático. "Olhei para 2020 e achei que este era o ano ideal. Coitada dela, né? Muito iludida", brinca.
A viagem começou pelo Japão, onde ela encontrou Eduardo, na época, um "lance casual". Ela fez um retiro espiritual em janeiro em um monastério, visitou, com o companheiro, países como o Vietnã, Camboja, Tailândia e, por fim, Indonésia.
Estávamos nesse rolê quando o coronavírus começou a 'acontecer', mas ainda era uma coisa muito distante para a gente"
A mãe da publicitária perguntava como estavam as coisas na Ásia, mas, até então, estava tudo aparentemente sob controle. "A gente achava que não seria um problema".
As coisas começaram a ficar "esquisitas" em março, quando a preocupação de seus entes queridos se tornou mais latente. "Até então, eu tinha perdido o celular e não estava muito ligada nas notícias. A partir dali, fiquei mais atenta ao que estava acontecendo e começamos a ficar receosos."
A noite que tudo mudou
Em março, Bianca e Eduardo tinham passagens marcadas para o Nepal e Índia. Depois disso, eles se separariam, uma vez que o fotógrafo voltaria para os Estados Unidos e ela iria para Quênia, Tanzânia, África do Sul e Marrocos para trabalhar em ONGs de assistência à população.
"Porém a Índia foi a primeira a fechar as fronteiras. Não poderíamos mais ir para lá. No dia seguinte, o nosso voo para o Nepal foi cancelado, com mais de uma semana de antecedência", diz.
"As ONGs para onde eu trabalharia também começaram a mandar e-mails dizendo que estavam suspendendo os programas com voluntários estrangeiros. Ficamos sem saber muito bem o que fazer, porque aquela foi a primeira vez que aquilo tinha afetado a gente", conta Bianca.
Eles estavam com passagens de barco e alojamento reservados para passar três dias em Gili Meno. "Decidimos, então, seguir com os planos para, na volta, decidirmos o que faríamos, se iríamos para outro país, se voltaríamos para nossas casas", narra. Era a parte da viagem mais luxuosa.
Gili Meno é um destino de lua de mel, então a hospedagem era caríssima. Queríamos aproveitar aquele lugar romântico antes de nos separarmos"
Para curtir mais aquele momento, eles se desligaram de seus celulares. "Ficamos um dia inteiro off, quando voltamos para a 'realidade', tudo tinha mudado".
As coisas aconteceram muito rápido. Em questão de horas, fronteiras foram sendo fechadas e Bianca e Eduardo começaram a ficar sem opções. "A gente percebeu que não queríamos nos separar. E que, se voltássemos para nossas respectivas casas, onde nossos pais idosos moram, colocaríamos eles em risco, já que teríamos que passar por pelo menos três aeroportos diferentes", fala a publicitária.
Depois de horas de ambos ao telefone falando com a embaixada de seus países e advogados que poderiam ajudá-los legalmente, saiu a notícia de que a Indonésia daria um visto de emergência para os estrangeiros que estivessem no país e que não quisessem se locomover naquele momento. "O país foi muito generoso nesse sentido, porque conseguimos nos legalizar e estender a nossa estadia."
Morando no paraíso
Diante de um retrato quase catastrófico que viam nas notícias e redes sociais, Bianca e Eduardo começaram a levar em consideração a ideia de continuar em Gili Meno, lugar onde, até o momento, a covid-19 ainda não chegou.
Pensamos que estávamos em uma ilha remota, com meios de subsistência. Não teria lugar onde ficaríamos mais seguros de uma possível contaminação por coronavírus"
Os dois eram os únicos estrangeiros não residentes da Gili Meno. "Agora tem outro casal, que veio de outra ilha, mas até então éramos os únicos 'turistas'", afirma Bianca. Sem os visitantes, o valor da hospedagem no destino caiu consideravelmente.
"Saímos de bicicleta para procurar um lugar para ficarmos e conseguimos negociar o aluguel por uma fração que não chega nem perto do que eu pagava para morar perto da Faria Lima, em São Paulo (SP)", fala. Hoje, eles moram em uma casa de bambu, com piscina privativa.
Eles foram acolhidos e ficaram próximos com as famílias que conseguiam falar em inglês. "Nossos melhores amigos são as crianças, com quem brincamos quando vamos à praia".
O lugar é tão vazio que, na volta da areia, Bianca e Eduardo só encontram bodes e vacas. "Dizem que aqui tem 300 habitantes, mas eu duvido. Nunca vi nem 200 pessoas", ri a publicitária.
A culpa
Os dias de quarentena de Bianca e Eduardo são muito ensolarados. O céu de Gili Meno é, de acordo com ela, de "um azul absurdo". Eles podem nadar com tartarugas e mergulham para ver as estátuas submersas de Jason de Caires Taylor.
"Passamos o dia lendo, cozinhando. É como se fosse um outro retiro espiritual, em que ficamos olhando mais para nós mesmos." Porém, o isolamento social não é tão prazeroso para a maior parte da população mundial. O casal sabe muito bem disso.
"Estamos vivendo uma vida muito bonita. A gente nem sabia que era possível, porque o mundo está passando por uma situação horrível e nós estamos aqui, nesse lugar lindo, em um relacionamento que acabou de começar", comenta Bianca.
Estar sentindo tantas coisas positivas em um contexto tão traumático para a população a fez começar a se sentir culpada. Porque estamos muito tranquilos, enquanto tem muitos amigos nossos tendo que lidar com a solidão, a reclusão."
Tanto que, inicialmente, não se permitiu falar disso em redes sociais. "Até que percebi que precisava registrar o que estávamos passando. Comecei a escrever um diário e a publicar algumas fotos, a fim de registro."
E, apesar de estar longe de seus familiares e amigos, Bianca se sente conectados com eles psicologicamente.
Está todo mundo vivendo a pandemia pela internet. Também estou vivendo isso com eles, por ver uma doença que tem matado muita gente. Até hoje eu ainda sinto muita culpa. Eu estou segura, mas todo mundo que amo não está"
Por isso, a publicitária começou, inicialmente, a fazer alguns trabalhos solidário pela internet. "Fui procurar ONGs para as quais eu poderia ajudar de alguma forma mesmo que remotamente."
Depois, descobriu uma forma de também contribuir para a comunidade de Gili Meno. "Eu tinha muito tempo livre, então fui descobrir como poderia colaborar para manter as aulas na escola daqui da ilha. Assim, comecei a dar aula de inglês para as crianças".
No fim das contas, Bianca conseguiu fazer parte do que ela tinha planejado fazer quando decidiu tirar o ano sabático.
Nas últimas semanas, a Indonésia liberou viagens internas e voos para alguns países. Tanto que o casal saiu, pela primeira vez, de Gili esta semana para ir até Ubud.
"Porque precisávamos levar a câmera na assistência e ir ao dentista". Para o futuro, Bianca e Eduardo, que continuam morando na ilha, estão planejando estender o visto para se manterem em isolamento.
Caso não consigam, irão para Turquia, uma vez que a publicitária passou em um processo seletivo para trabalhar em uma ONG no Istambul. "E lá conseguiríamos ficar isolados novamente em algum lugar da Capadócia", diz. "A nossa ideia é continuarmos juntos em um lugar sem muita movimentação."
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