Como no filme "O Terminal", jovem vive limbo migratório no Japão
Era 21 de julho o dia da despedida. Depois de quatro anos estudando em Kyoto, no Japão, a jovem venezuelana Elisa Ovalles, 23, estava prestes a deixar o arquipélago asiático.
A bordo de um voo com destino a Tóquio, onde faria a primeira de quatro escalas rumo a Tenerife, nas Ilhas Canárias, na Espanha, da janela ela viu as cidades japonesas ficando cada vez mais distantes, menores entre as nuvens. "É isso. Estou realmente indo embora", pensou. Pensou errado.
Elisa desembarcou no Aeroporto Internacional de Tóquio (Haneda) às 19h30. Era um cenário de "filme de terror", segundo sua lembrança: as luzes estavam apagadas, os cafés estavam quase fechados e apenas um balcão de check-in operando. "Lamento, você não pode embarcar neste voo", disse-lhe o atendente da companhia aérea, a Turkish Airlines.
"Desculpe?", respondeu Elisa, imaginando que se tratava de um simples engano. O atendente japonês se aproximou e mostrou um e-mail no seu smartphone: na noite anterior, autoridades espanholas tinham encaminhado uma lista de países cujos passageiros estavam autorizados a cruzar suas fronteiras na pandemia de Covid-19 — a Venezuela não estava entre eles.
Embora tenha vivido os últimos anos no Japão (país permitido pelas autoridades espanholas), no papel Elisa é uma cidadã venezuelana (país não-permitido). Ela pretendia encontrar sua família radicada na Espanha, que inclusive escrevera uma carta-convite como documento comprobatório de condições de hospedagem para os 90 dias seguintes, isto é, a validade do visto de turismo. E ouviu da atendente:
Independentemente de você ter morado no Japão, você não é japonesa. Esta é uma questão de nacionalidade. Se você não tem passaporte ou visto espanhol, você não pode embarcar. Você tem visto?"
Venezuelanos não precisam de visto de turismo para entrar no território espanhol, ela argumentou e implorou para considerarem as condições imprevisíveis da pandemia. "Lamento, mas você não pode embarcar" foi a resposta final.
"O Terminal"
Elisa caiu num limbo inédito: ficou "ilhada", sem visto japonês para poder ficar, nem visto espanhol para poder embarcar, nem possibilidade de voltar à Venezuela.
Prestes a ir embora do Japão, ela já tinha devolvido as chaves do apartamento de Kyoto, fechado a conta no banco, trocado ienes por euros, encerrado a conta de telefone e tudo mais.
O impasse lembra o filme "O Terminal" (2004), dirigido por Steven Spielberg e protagonizado por Tom Hanks, que conta a história (fictícia) de um homem preso num terminal de aeroporto nova-iorquino, sem poder entrar nos Estados Unidos nem voltar a seu país de origem que deixara de existir depois de um golpe, a imaginária Krakozhia.
De Caracas a Kyoto
O filme favorito de Elisa, entretanto, é outro: a animação "A Viagem de Chihiro" (2001), de Hayao Miyazaki, que narra a aventura de uma corajosa garota japonesa perdida em uma cidade misteriosa. Foi por causa deste filme que a venezuelana escolheu estudar no Japão.
Fã dos filmes do Studio Ghibli e animes desde a infância, ela estudou japonês na adolescência em Caracas e, aos 19 anos, ingressou no curso de relações internacionais na Universidade Ritsumeikan, em Kyoto. Desde 2016, quando Elisa imigrou, cerca de 5 milhões de venezuelanos também deixaram o país, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados.
Entre 2016 e 2018, ela morou no alojamento do campus universitário. Depois, alugou um apartamento próprio. Na condição de estudante, podia trabalhar até 28 horas semanais: teve trabalhos temporários, deu aulas de inglês e espanhol e, a partir de 2019, fixou-se na cafeteria da universidade, uma franquia da norte-americana Tully's Coffee.
Planos frustrados
2020 seria um ano de aventura. Os pais de Elisa viriam para a formatura, marcada para 21 de março, e juntos eles viajariam o arquipélago todo; depois, voltariam à Venezuela, onde ela passaria férias antes de embarcar para o próximo destino, uma pós-graduação na Itália.
Nada disso aconteceu: a pandemia estourou no dia 11 de março e as fronteiras foram paulatinamente fechadas no mundo todo.
Isolados, os pais de Elisa desistiram de tentar sair da Venezuela. No Japão, o visto estudantil expirou e Elisa ficou com um visto de turista de 90 dias, que não lhe permite trabalhar legalmente — isto é, era uma questão de tempo, três meses, para cair na condição "ilegal".
Como não há voos humanitários do Japão à Venezuela, o plano B foi comprar uma passagem para Caracas, para 21 de março, mas a jovem bacharel acabou desistindo de embarcar: o governo de Nicolás Maduro impôs restrições ao retorno a venezuelanos que estavam no exterior, limitando o número de permissões por dia e determinando quarentena obrigatória de 14 dias em abrigos nas fronteiras, instalações insuficientes e precárias, reportaram a ONG Human Rights Watch e a agência Bloomberg.
Apesar do discurso "de braços abertos", o governo venezuelano passou a responsabilizar repatriados pelo aumento dos casos de covid-19 no país, referindo-se a emigrantes como "armas biológicas".
Minha família não conseguiu vir e eu não consegui voltar"
Entre abril e julho, Elisa se hospedou em hotéis, casa de amigos em Osaka e Airbnb em Kyoto. O plano C foi tentar encontrar a família que vive na Espanha, que reabriria fronteiras para viajantes a partir de 1o de julho.
Ela marcou a passagem para 16 de julho, de Osaka a Tenerife, que foi cancelada pela companhia aérea e remarcada para 21 de julho, partindo de Tóquio. Foi a fatídica noite em que se viu sozinha no aeroporto "fantasma", desolada na área de check-in com duas malas de 23 quilos e uma mochila de 8 quilos a tiracolo, 2 mil ienes (cerca de 100 reais) no bolso e sem ter aonde ir.
A antiga casa de Kyoto já não existia mais; os amigos da universidade se foram após a formatura de março; o namorado sul-coreano infelizmente virou ex.
De Tóquio a Milão
"Foi a primeira vez que me vi inteiramente sozinha — sem amigos, sem família, sem viva alma no aeroporto. Chorei por horas, de raiva, de tristeza, de tudo", conta.
Me senti humilhada e perdida, presa em um país onde meu visto está prestes a vencer, sem casa, sem emprego, sem seguro de saúde, sem documento para abrir uma conta bancária ou pedir um cartão internacional"
Eram quase 2 horas da madrugada quando ela, enfim, se levantou. "Foi instinto de sobrevivência. Às vezes dá vontade de jogar a toalha, mas desistir não é uma alternativa para mim. Parei, pensei e fui".
Elisa rodou o aeroporto até encontrar um caixa eletrônico capaz de converter euro para iene, para conseguir pagar uma noite em um hotel no terminal. Dormiu 3 horas e, na manhã seguinte, foi às embaixadas da Venezuela, da Espanha e da Itália.
Na primeira, deram de ombros: não há nada a fazer, informaram-lhe. Na segunda, indicaram-lhe comprar uma nova passagem e tentar embarcar de novo apostando "na sorte". Na última, a italiana, levou uma carta de admissão da Universidade Bocconi, em Milão, e lhe disseram que a partir de setembro ela poderia pedir um visto de estudante, pois o curso só se iniciará em janeiro de 2021.
Ilhada, ela traçou um plano D: pedir um visto especial que lhe permita ficar no mínimo seis meses no Japão e um visto estudantil para a Itália, um trâmite que deve demorar dois meses. Se tudo der certo, ela espera poder partir em novembro.
Até lá, alugou um Airbnb e conta com ajuda financeira dos pais, proprietários de uma empresa de construções elétricas.
Estou presa, mas não estou mal. A pandemia está afetando a todos nós, em diferentes níveis. E precisamos reconhecer nossos privilégios: estou isolada em um apartamento sozinha em Tóquio, mas há muitos imigrantes presos em abrigos, acampamentos e aeroportos, de Caracas a Istambul"
Segundo as Nações Unidas, milhares de migrantes estão no limbo jurídico diante das restrições nas fronteiras ao redor do mundo.
Durante a entrevista por vídeo a Nossa, no dia 25 de agosto, Elisa estava na prefeitura de Tóquio, onde deveria registrar seu novo endereço na capital japonesa — todos precisam cadastrar a informação no Zairyu Card, o documento de identificação de residentes estrangeiros.
Ficou mais de três horas esperando no lobby, lotado de estrangeiros. "Olho ao redor e vejo que esses impasses não aconteceram só comigo", diz.
Um pedaço de papel, um passaporte nos define e, na pandemia, mais muros foram construídos mundo afora. Ajudar alguém nessas condições pode ser simples: uma palavra de solidariedade, carregar uma mala, oferecer um copo d'água, ouvir o que o outro tem a dizer"
Na Itália, ela estudará na escola de negócios SDA Bocconi. A ideia é combinar os conhecimentos da área de relações internacionais com a ideia de desenvolvimento sustentável entre Europa, Ásia e América Latina.
"Honestamente, não me vejo voltando de vez para a Venezuela. Quero ajudar meu país, mas penso que posso contribuir mais estando fora. Um dia, pós-pandemia, gostaria de voltar a viver no Japão. No fim, até agora, é o que considero meu lar."
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