A culinária amazônica conquistou o chef mais influente da gastronomia moderna, o espanhol Ferran Adrià, virou capa do The New York Times e ganhou o mundo com o açaí, fruto nativo da floresta.
E graças a uma recente democratização de produtos e de uma busca por nossas raízes alimentares, a gastronomia que é um reflexo da biodiversidade da mais importante floresta do mundo ganha novo papel na mesa brasileira.
Levou tempo — e muito trabalho por parte de alguns chefs — para que ela se tornasse mais familiar aos brasileiros que vivem em estados distantes da região Norte. Mas agora a gastronomia amazônica se tornou mais conhecida e difundida.
Um dos pioneiros nesse sentido foi o paraense Paulo Martins, considerado o incansável embaixador da sua culinária das sua terra, que difundiu técnicas e ingredientes no restaurante Lá em Casa (em Belém) e no festival Ver-o-Peso.
Foi a sua paixão pelos produtos amazônicos, das frutas nativas aos peixes de rio, que depois despertou a atenção de cozinheiros como Alex Atala, Laurent Suaudeau e Adrià para eles.
Com a morte do chef há 10 anos, sua filha Joana Martins, que herdou o legado de promover sua gastronomia, se diz contente com o status que os ingredientes da floresta finalmente alcançaram.
Eu acho extremamente positivo que o Brasil conheça suas culinárias regionais, que olhemos com atenção para os produtos da Amazônia, que é um orgulho tão grande que temos"
Para Joana, os brasileiros sempre tiveram uma lógica de valorizar mais o que é de fora. "Acredito que perdemos muito com isso, econômica e culturalmente, mas agora temos tempo de resgatar e olhar para nossas raízes", acrescenta.
O que mudou nos últimos anos foi um sistema que deu o acesso ao conhecimento e às informações sobre os produtos da floresta.
"Muitos chefs passaram a olhar com carinho para a cozinha brasileira e a estudá-la, pesquisá-la e divulgá-la. Regiões como o Cerrado e a Mata Atlântica ganharam muito com isso, mas especialmente a Amazônia", afirma.
Acesso aos ingredientes, antes mais restritos regionalmente, também foi primordial, com um aprimoramento da cadeia produtiva e de distribuição: hoje, é possível encontrar tucupi, farinha de tapioca e até frutos nativos em supermercados.
Joana criou a Manioca, uma pequena indústria de alimentos feitos com ingredientes amazônicos, para distribuir por todo país produtos da região. "Nosso objetivo é olhar a cadeia produtiva, colocar no mercado o que a floresta nos dá, valorizando a cultura da região".
Pela floresta ser o maior berço de diversidade do planeta, ela defende que não faz sentido tirar a fauna para plantar soja, por exemplo.
Queremos mostrar que a floresta em pé pode ter mais valor, com cultivo sustentável de castanhas, do cupuaçu, do açaí. São sistemas de produção aliados da floresta"
Também assim, é possível ter uma democratização que passa pelo acesso. "Esses ingredientes não podem estar apenas nas mãos de chefs e profissionais, é preciso que ganhem mais espaço na mesa das pessoas para se tornarem populares", acredita.
Na gastronomia, esses ingredientes e receitas se tornaram mais comuns também, saindo dos "restaurantes típicos" e ganhando predominância em espaços de cozinha contemporânea — ainda que lentamente, já que representam uma fatia pequena do mercado especialmente se comparados a outras "cozinhas internacionais"".
Desde que abriu há um ano na capital paulista uma filial do Banzeiro, seu restaurante manauara de comida amazônica, o chef Felipe Schaedler diz que tem testemunhado uma apreciação maior por parte dos clientes.
"Quando eu abri em São Paulo, muita gente dizia que não gostava de costela de tambaqui porque tinha provado muitas versões ruins da receita. A cozinha da Amazônia virou uma febre, que depois passou", ele diz.
Se acordo com Schaedler, muitos aspectos da gastronomia brasileira, que é tão rica, acabam ficando pelo caminho porque as pessoas simplesmente param de consumir depois de um modismo mais massificado, o que é ruim para nossa cultura alimentar.
Mas felizmente restam restaurantes e cozinheiros que passaram a realmente valorizar os saberes culinários da região e fazerem boas representações de receitas a partir deles.
"Muitos chefs começaram a incorporar esses ingredientes nas suas cozinhas, como a Helena Rizzo, a Bel Coelho e o Thomas Troisgros, que faz um uso incrível do tucupi para aportar acidez em seus preparos", salienta.
O grande valor da cozinha amazônica, para ele, é sua diversidade, já que oferece tudo o que um chef procura.
Há desde frutas de diferentes sabores, com todos os tipos de acidez, como cupuaçu, bacuri, até peixes incríveis que podem ser magnificamente assados. É uma cozinha muito completa"
A chef Bel Coelho, do Clandestino (que se tornou um projeto exclusivo de entregas durante a pandemia), concorda. "A Amazônia é enorme, e possui vertentes distintas em áreas como o Alto Tapajós ou o entorno de Manaus. São cozinhas próprias de uma identidade muito rica", diz.
Uma riqueza, aliás, que o brasileiro passou a reconhecer, sobretudo pelo que os ingredientes em si podem oferecer. Mas também — e mais recentemente — por um processo de "descolonização", como ela diz, que passou a pautar nossa gastronomia recente.
Por muito tempo as cozinhas regionais foram ignoradas, principalmente as de matriz indígena e negra, por conta do nosso processo histórico de colonização"
"Para os portugueses que chegaram aqui, só fazia sentido produzir os ingredientes que lhes eram conhecidos, e não olhar para o que o índio na Amazônia cozinhava", explica Bel.
Essa reparação histórica tem sido feita por cozinheiros e amantes da culinária brasileira que enxergam nessas tradições nativas dos povos da Amazônia um valor alimentar enorme.
"Há maior interesse por parte da gastronomia no que diz respeito a este pilar culinário cultural brasileiro", acredita.
Para Bel, a democratização de alguns aspectos da culinária amazônica pode ser um ponto imprescindível para reposicioná-la. "Infelizmente, quem perdeu com o fato de uma parte da nossa cultura culinária ter sido ignorado foi o próprio Brasil", ela acrescenta. Mas parece haver um interesse de reparar isso, a começar pela nossa mesa.
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