Uma fina fatia de salmão cru embala uma bolinha de arroz, coberta com bacon, cream cheese e cebolinha. Eis um exemplo de sushi à moda brasileira. Outras combinações incluem ingredientes inusitados como açaí, abacate, banana, couve frita e goiabada com queijo minas (o brasileiríssimo duo Romeu & Julieta).
O estilo excêntrico surpreendeu japoneses, ilustraram vídeos virais como os registros das experiências de Akari Terrell, do BuzzFeed Japan, e de Takashi Kanazawa, na página do Yo Ban Boo no Facebook. Nos últimos tempos, porém, o sushi à la Brasil conquistou nichos de negócios mundo afora, inclusive no Japão.
Foram abertos empreendimentos de culinária japonesa com "jeitinho" brasileiro, isto é, incorporando invenções sul-americanas nos menus de Miami, Flórida (como o sushi-bar Sushisamba), a Londres ou Turin (caso da franquia Temakinho, cujo slogan é "Japanese food, Brazilian way"). No Japão, berço do sushi, brasileiros abriram pequenos negócios na área, de workshops de sushiman a delivery.
Desde 2008 entre idas e vindas entre Brasil-Japão e atualmente radicados em Hekinan, Aichi, os paranaenses Bia e Kayke Ariyoshi lançaram neste ano o sushi itinerante Oishi com o lema "é japa, mas é brasileiro" — é deles o Jow Bacon, o sushi com salmão cru e bacon frito citado no início da reportagem.
O slogan enfatiza o estilo da nossa cozinha, trazendo o gostinho dos restaurantes japoneses do Brasil para os brasileiros que moram aqui. Apreciamos muito a cozinha de fusão e as variações que um prato tradicional pode ter"
Kayke Ariyoshi
O restaurante aceita pedidos por encomenda e os entregam nas cidades da província de Aichi, que concentra o maior número de residentes brasileiros (52.919, segundo dados do Ministério da Justiça do Japão de 2018).
Ingredientes como couve, maracujá e pimenta biquinho são adquiridos em mercados de produtos brasileiros. "E fazemos questão de usar shoyu brasileiro para preparar o molho tarê", detalham.
Embora residam no Japão, muitos brasileiros continuam preferindo comprar produtos importados do Brasil, como o shoyu da marca paulistana Sakura.
Muitos menus incorporam invenções americanas, como o Califórnia roll (um tipo de sushi com abacate, kani e pepino), Filadélfia (com cream cheese e salmão) e Joy (também conhecido como Joe, Jow ou Djô, coberto com cream cheese, cebolinha e salmão picado, muitas vezes finalizado com elementos extras como ovas e geleia de pimenta).
Fusion food
O paulista Angelo Merloto abriu a escola Subarashii Sushi School, em Nishio, Aichi, em 2013. Ali, Merloto dá cursos para ensinar a limpar e preparar peixes, polvos e frutos do mar, mas acrescenta um toque abrasileirado às receitas.
Há, por exemplo, um sushi "midori" com salmão empanado, cream cheese, kani, abacate e pimenta chilli, e um "hot roll" com Nutella ou banana, canela e leite condensado.
"Fica bom, fica top", diz. "O pessoal procura a inovação. Diferentemente do Japão, no Brasil ninguém vai pedir dois niguiris só [sushi simples, com uma fatia de peixe cru sobre o arroz]", comenta, considerando o paladar do público-alvo brasileiro.
O estilo fusion food (fusão de ingredientes e tradições culinárias de diferentes países) vem timidamente conquistando cozinhas no arquipélago asiático, inclusive em iniciativas institucionais.
Em 2016, o paulistano Celso Hideji Amano venceu a World Sushi Cup, uma competição desde 2013 organizada pelo World Sushi Skills Institute, em Tóquio, com a chancela do Ministério da Agricultura e Piscicultura do Japão — entre as receitas de Amano estava um sushi com banana e café.
Desde 2018, o Consulado-Geral do Brasil em Tóquio realiza o concurso de culinária Burajiru Grand Chef para destacar cozinheiros que utilizam técnicas e ingredientes do Brasil e do Japão. Os vencedores da edição deste ano, inteiramente digital devido à pandemia de covid-19, serão divulgados no dia 2 de novembro.
Em 2019, o brasileiro André Nobuyuki Kawai, radicado no Japão desde 1991, recebeu o título de Embaixador do Sushi no Brasil e em Portugal, concedido pelo World Sushi Skills Institute. Natural do Rio de Janeiro, Kawai fundou a escola Nagoya Sushi School, em Nagoia, Aichi.
O chef carioca já busca seguir a culinária japonesa tradicional à risca.
Meu mestre dizia que devemos seguir as tradições. Se for para pensar um estilo mais fusion, que seja uma fusão clean e honesta, não fugindo da raiz com experimentos extravagantes. Isso quer dizer valorizar um bom gohan, um bom wasabi, um peixe corretamente cortado"
Kawai lançou uma filial da Nagoya Sushi School no bairro paulistano da Liberdade, liderada por Hiro Ozono, autor do blog Sushibilidade. Na matriz japonesa, dizem, os alunos são majoritariamente imigrantes brasileiros que querem se especializar como sushiman pensando na volta ao Brasil.
Já na filial brasileira, os alunos se dividem entre curiosos que querem aprender por hobby e empreendedores que pretendem investir em novos negócios. Ozono ministra o treinamento básico, que inclui o sushi estilo brasileiro, as famosas versões variadas dos rodízios; Kawai faz o treinamento avançado, ensinando o sushi tradicional, "real, oficial".
"Certa vez fui a um sushi em Orlando, Flórida. Estava lotado. Era um sushi literalmente brasileiro: rodízio, invenções, adaptações, o combo completo. A ideia de sushis feitos por imigrantes e para imigrantes é tendência onde há concentração de brasileiros. É um novo nicho", considera Ozono.
O fusion pode vender mais, mas sempre tento destacar o tradicional para que os brasileiros vão familiarizando o paladar com a riqueza da culinária japonesa típica. É uma semente vai germinando"
André Nobuyuki Kawai
Tropicalizar?
Em 2013, o "washoku", a milenar culinária japonesa, tornou-se patrimônio cultural imaterial da humanidade, título concedido pela Unesco, a agência das Nações Unidas para ciência e cultura.
Nos bastidores dos paulistanos Kinoshita (restaurante japonês premiado com a estrela Michelin) e Kurâ Izakaya (pub inspirado nas antigas casas nipônicas de saquê), o restaurateur Marcelo Fernandes defende as tradições do washoku:
Buscamos o extremo da essência da gastronomia nipônica. Queremos valorizar o primor dos insumos, o equilíbrio elegante de um saquê, a sutileza do sabor de um shoyu. É uma arte"
"Confesso que às vezes sinto que estou indo na contramão, ao notar muitos chefs fazendo sucesso com restaurantes mais modernos, fusion e americanizados, mas é uma escolha. Nós não tropicalizamos. Preferimos as tradições", diz.
Entretanto, apesar dessas diretrizes, às vezes os restaurantes de Fernandes enfrentam contratempos para obter produtos originais japoneses, o que se acentuou na pandemia. Assim, equilibram ingredientes brasileiros da temporada e a técnica tradicional japonesa no corte e no cozimento.
O nabo cultivado no Brasil, por exemplo, é diferente do produzido no Japão. Itens como wasabi e yuzu também precisam de certas adaptações. Pescados como o atum há, mas a oferta é diferente devido às estações diferentes nos dois hemisférios. Na pandemia, eles têm importado arroz japonês e saquê dos Estados Unidos, como alternativa.
Segundo Fernandes, outras adaptações incluem tendências contemporâneas da alta gastronomia japonesa. "No Kinoshita, a ideia é ficar 'antigo', isto é, deixar uma história, um legado, mas não ficar 'velho'", diz.
Entre extravagantes e puristas, há ao menos um consenso: a cultura culinária é dinâmica, aprimorando-se de acordo com o tempo, o que permite descobrir novas nuances, texturas e técnicas ao equilibrar a matriz japonesa e a atmosfera de outros países, com suas singularidades, preferências e memórias gustativas. Afinal, tem gosto para tudo.
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