Como é visitar um parque nacional na pandemia - e entre "desmascarados"
Férias em meio a uma pandemia é algo meio agridoce. Um privilégio, sem dúvida, mas tirar férias para fazer o quê? Aboletar-se em casa e ver filmes e séries? Com saúde pública e economia aos trapos, a solução seria uma viagem curta, relativamente barata e com doses generosas de isolamento social. Bora pro mato, então.
Acabei decidindo pelos parques nacionais de Aparados da Serra e da Serra Geral. Sem querer, abracei a tendência de "viagens isolacionistas", que nada mais são do que aqueles destinos repletos de ar puro, natureza e pouco contato com os potenciais baús de vírus que são os seres humanos.
Valorização dos parques
Nada como uma pandemia que já matou mais de 1 milhão de pessoas no mundo para repensar diversas coisas. Eu cresci aos pés do primeiro parque nacional do país, o de Itatiaia, e sempre achei que nossos parques são subvalorizados. Não é mera impressão.
Segundo uma pesquisa de 2019 do Instituto Semeia, 43% dos brasileiros entrevistados em seis regiões metropolitanas jamais visitaram uma atração do tipo.
Os problemas apontados pela pesquisa são velhos conhecidos. Falta incentivo, faltam recursos, falta estrutura. No caso de Aparados da Serra e Serra Geral, que têm gestão integrada, um grande problema é a falta de regularização fundiária. A União ainda precisa adquirir terras particulares nas áreas de ambos os parques e são comuns os relatos de gado pastando.
Fazia quatro anos que eu não visitava ou conhecia alguma das 40 unidades administradas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) abertas para o público. O coronavírus acabou me estimulando a voltar.
No parque
na pandemia
O Parque Nacional de Aparados da Serra foi criado em 1959 a fim de preservar a Mata Atlântica e as florestas de araucárias que se estendem na divisa leste do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, especialmente em um pedaço da Serra Geral marcado por impressionantes cânions.
O mais famoso deles é o do Itaimbezinho, um desfiladeiro com 5,8 quilômetros de extensão e até 750 metros de profundidade. No alto, campos abertos e vegetação de florestas nubladas de altitude. Nas bordas, descendo os abismos, vemos as rochas talhadas, imponentes, como se tivessem sido aparadas - foi essa a impressão dos tropeiros que batizaram a região.
Em 1729, Francisco de Souza Faria chegou ao topo dos Aparados da Serra enquanto abria o Caminho dos Conventos, primeira rota de tropeiros a ligar o Sul ao resto do Brasil, explica Carlos Zatti no livro A História do Sul.
À medida que se desce o olhar, a Mata Atlântica ocupa cada vez mais os sulcos das pedras, até tudo ser uma imensidão verde em que cachoeiras fazem a festa das andorinhas na primavera e o rio do Boi serpenteia lá embaixo, tímido entre os colossos que o cercam. Coisa linda.
Para se chegar à borda do Itaimbezinho é preciso fazer uma trilha aberta, a do Cotovelo. Ela é tranquila, dispensa guia e sai das proximidades da sede do parque. Uma placa informa que o percurso inteiro dura cerca de três horas. Em um ritmo mais acelerado, dá para ir, voltar, gastar uma horinha naqueles momentos #gratiluz, babando na natureza, e ainda fazer a trilha menor, a do Vértice, nas mesmas três horas. Qualquer que seja sua velocidade, faça as duas trilhas, porque são vistas diferentes e complementares da mesma paisagem.
O parque é relativamente bem sinalizado e os funcionários são prestativos (me disseram até o ângulo de visão do cânion que cada trilha proporciona). Desde que foi reaberto ao público, em julho, há placas e outras advertências pedindo uso de máscara e respeito ao distanciamento social.
Desmascarados
Se no centro de visitantes o público seguia as recomendações, organizava-se em filas espaçadas para usar o banheiro e tudo mais, nas trilhas a história é outra. Quase todo mundo sem máscara.
"Tudo bem, é área aberta, não tem aglomeração, além do mais fazer trilha de máscara é um porre", alguns podem dizer. Mas, infelizmente, não custa lembrar que ainda estamos em meio a uma pandemia e que o uso de máscara é, além de um instrumento para conter a propagação de vírus, um sinal de respeito ao próximo.
Ou seja, é bom estar preparado para dar de cara com grupos de trilheiros desmascarados.
Na minha experiência, isso foi um detalhe que chegou a incomodar um pouco, mas nada que estragasse a viagem. Longe disso. Há espaço de sobra, se pintar uma galerinha barulhenta e sem máscara no caminho, aperte o passo, olhe para o outro lado, fique mais longe e tome seu rumo.
Outro programa popular do parque é a trilha do Rio do Boi. Mais intensa, exige guia, são 8 quilômetros de caminhada dura, mas é bem mais refrescante, pois atravessa o rio, dentro do cânion, passa debaixo de cachoeiras e tem diversos percursos com o pé na água. É programa para os dias quentes em Aparados da Serra.
O parque explica em seu site oficial que a trilha está funcionando com capacidade reduzida de 55 visitantes por dia. Informe-se antes de ir em https://www.icmbio.gov.br/parnaaparadosdaserra/guia-do-visitante.html
Serra Geral
Criado em 1992 e limítrofe a Aparados da Serra, o Parque Nacional da Serra Geral funciona como uma extensão do irmão mais velho, com florestas de araucárias, campos e Mata Atlântica em um relevo marcado por paredões verticais. Ou seja, mais do mesmo - e ainda bem.
O destaque é o cânion Fortaleza, muito procurado inclusive para sessões de fotos de noivos. Assim como no Itaimbezinho e em outras formações de ambos os parques, as rochas basálticas adquirem, em vários pontos, um tom amarelado, causado por líquens e pequenos arbustos que crescem nos paredões.
O Fortaleza tem 8 quilômetros de extensão, até 940 metros de profundidade e 1.500 metros de largura. A vista é mais impressionante ainda no mirante do Fortaleza, acessado após meia hora de caminhada por trilha, com subida de cerca de 100 metros de elevação.
Na borda do cânion, tenha cuidado, pois não há nenhum cordão de isolamento nem uma sinalização para evitar chegar muito perto do abismo. É só você e seu bom senso. No dia em que eu estava no Fortaleza, uma família que passeava no parque mantinha o tempo todo o filho pequeno amarrado em versão rudimentar das chamadas coleiras infantis.
No alto, a 1.106 metros de altitude, aquela impressão de pequenez diante de cenários assombrosos da natureza pode tomar você por completo. Um imenso rasgo na Terra, paredões que dilaceram o planalto e adentram os campos de altitude, abrindo caminho para o litoral, lá em baixo. Em dias claros, é possível ver, a 39 quilômetros de distância, até os prédios de Torres, cidade famosa pelas falésias à beira-mar, que surgiram na mesma formação geológica que originou os cânions, no período Cretáceo.
Assim como o parque de Aparados da Serra, o da Serra Geral também tem trilhas com rios e cachoeiras, nas partes alta e baixa - aliás, é isso que marca a divisa dos estados. No alto, até as bordas dos cânions, é Rio Grande do Sul. O interior deles, ou seja, os paredões e a parte baixa, é Santa Catarina.
Para os que não são tão fãs assim de trilhas, a ótima notícia é que as maiores atrações, as mais singulares e impressionantes (Itaimbezinho, em Aparados da Serra, e Fortaleza, no da Serra Geral) são as mais acessíveis, com as menores trilha.
Valeu a pena?
Os cânions e toda a natureza ao redor deles são lindos. Qualquer pessoa com algum preparo físico e o mínimo de tolerância para esse tipo de programa vai gostar. Os parques ficam a meia hora de Cambará do Sul, e a cidade está a 200 quilômetros de Porto Alegre e a 117 de Gramado, então pode entrar em roteiros pela Serra Gaúcha ou a capital, basta acrescentar no mínimo dois dias à programação. Fora que Torres está a 88 quilômetros, caso você queira ver também as belas falésias do Parque da Guarita.
A estrutura do Parque da Serra Geral deixa muito a desejar, mas ambos são gratuitos. Nem o estacionamento é pago. Se valeria a pena cobrar para ter mais infra, mais informação, é uma discussão válida.
Ainda não há dados referentes à reabertura dos parques, mas, segundo o Boletim de Inteligência de Mercado no Turismo, divulgado em setembro, o número de visitantes em unidades de conservação federais tem aumentado desde 2015. Em 2018, foram 12,3 milhões. Em 2019, 15,3 milhões. No atual contexto, a procura deve seguir aumentando (e os problemas devem ficar mais evidentes).
Em nenhum momento achei que estava me arriscando demais, que deveria estar em casa ou que o destino escolhido era perigoso em termos "covídicos". Em tempos tão turbulentos e doentios, literalmente falando, férias no meio da natureza são um respiro sem igual.
No hotel em que fiquei (Cambará Eco), a recepcionista confere sua temperatura no check-in, o uso de máscara é obrigatório em toda a área e há álcool gel por todo lado. O mais marcante é constatar que o café da manhã dos hotéis talvez tenha mudado para sempre.
Em vez de se atracar no bufê, tive que decidir, na véspera, o que gostaria de comer e beber. Além disso, precisamos optar entre ser servidos no quarto ou no próprio restaurante.
Animou?
Quando ir
Se o verão é bom para a parte baixa, com quedas d'água e trilhas molhadas, o inverno é o ideal para as trilhas nas bordas dos cânions. Com menos nuvens e visibilidade tinindo, é possível admirar por quilômetros essas fendas, especialmente de manhã. Setembro, segundo as estatísticas, é o mês mais chuvoso. Mas eu fui no fim de setembro e peguei dias lindos. Então, não descarte o destino caso você só consiga viajar nesse mês.
Saiba que o clima no parque é instável, logo pode ser prudente ter um dia de "reserva" na programação para o caso de chegar lá e não ver muita coisa. Fique de olho no monitoramento da Estação Meteorológica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que atualiza os dados a cada 10 minutos.
Onde ficar
A pequena e simpática Cambará do Sul funciona como base para o parque. Do centro à entrada principal do Parque de Aparados da Serra são 20 quilômetros, quase tudo em estrada de terra, cheia de pedras. Dá para encarar com um carro comum, mas cuidado nos dias chuvosos. Para o Parque da Serra Geral é outra estrada, bem indicada a partir do centrinho. São 18 quilômetros em um belo caminho, e boa parte está asfaltada. Mas, depois, tome pedras e paciência.
Se o Parque de Aparados da Serra tem mais estrutura e profissionalismo, o da Serra Geral se limita a uma guarita simplória na entrada. Depois, você está por sua conta e o nível de informação é quase nulo. O primeiro estacionamento serve para as trilhas da Cachoeira Tigre Preto e a da Pedra do Segredo. Para a trilha do cânion Fortaleza, siga adiante até a estrada acabar em um outro estacionamento. Nada disso é informado no percurso.
A oferta de hospedagem em Cambará do Sul e também em Praia Grande (SC), outra cidade na borda dos parques, não é das mais variadas. Uma sucessão de pousadinhas que dão a impressão que você pode congelar nas madrugadas, entremeadas por refinados empreendimentos erguidos no meio da natureza.
Com mais calma, dá para achar opções no meio-termo. Mas, em todas, os procedimentos mudaram com a covid-19.
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