Além da cerveja de abadia, monges católicos criaram mais bebidas. Conheça
Quando se fala em bebidas criadas e produzidas por membros da Igreja, a primeira imagem a surgir na cabeça talvez seja a das cervejas de abadia. Mas eles contribuíram largamente para o surgimento e a disseminação de uma série de outras bebidas alcoólicas ao longo dos séculos.
Nada de anormal para o cristianismo, religião que surgiu a partir do homem que, segundo a fé, transformou água em vinho.
São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, dedicou algumas linhas ao consumo de álcool. Na questão 150 ("Da embriaguez"), ele explica por que tomar um porre pode ou não ser considerado pecado, dependendo da situação:
A embriaguez pode ter lugar mesmo sem pecado, sobretudo se não se der por negligência humana; e nesse sentido se crê que Noé se embriagou, conforme o refere a Escritura."
Não dá para falar de liturgia cristã sem mencionar pão, vinho e transubstanciação (quando eles são transformados no corpo e no sangue de Cristo para a eucaristia). É difícil citar o desenvolvimento do vinho moderno sem mencionar a contribuição de homens (e mulheres) da Igreja.
Dessa usina criativa, outras bebidas brotaram e encantaram os bebedores de ontem, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém.
Vinho milagreiro
Martinho era só mais um soldado romano naquele ano de 360, até que viu Jesus em um sonho, largou o exército, foi batizado, virou monge, viveu isolado na Itália e, enfim, retornou à França. Lá, ele se tornou bispo da cidade de Tours.
Exímio viticultor, Martinho de Tours desenvolveu as uvas chenin noir e chenin blanc a partir de espécimes nativas das florestas da região. Seu burro de carga teria contribuído um bocado para a qualidade de seu vinho ao comer todas as vinhas acima da altura do joelho e, sem querer, ter introduzido a técnica da poda, que proporcionava uvas e vinhos melhores.
Na verdade, trata-se de uma lenda. A mesma historinha já existia na Grécia antiga e era atribuída a Aristeu, sobrinho de Dionísio e grande fazedor de bebidas. Ao ganhar uma nova roupagem na França, a anedota serve para reforçar o papel desse homem que, ao ser canonizado, tornou-se santo padroeiro dos produtores de vinho.
São Martinho de Tours não está sozinho na missão, existem outros santos protetores dos viticultores e vinicultores. No Brasil, o mais lembrado é Vicente de Saragoça, um mártir do século 3 que, curiosamente, não teve ligação com o líquido sagrado durante sua vida.
Se a França virou protagonista na arte do vinho, não foi graças ao trabalho de Martinho de Tours, mas ao de outro santo, um italiano: Bento de Núrsia. Foi a ordem que leva seu nome, fundada em 529, que criou as condições ideais para o desenvolvimento do álcool. Os monges beneditinos seguiam regras bem estabelecidas de oração, estudos e trabalho no campo. Dedicavam corpo e mente às delícias que, sob batutas humanas, surgiam da terra.
Ao longo de 500 anos, praticamente tudo o que conhecemos hoje como vinho francês era produzido pela ordem. Os beneditinos dominaram Bordeaux, Vale do Loire, Borgonha, Champagne etc., conta o historiador britânico Desmond Seward no livro "Monks and Wines" ("Monges e vinhos", sem edição brasileira).
No século 11, poderosos, eles investiram o dinheiro arrecadado da aristocracia em pompa e novas e suntuosas igrejas, desviando-se das motivações originais de simplicidade e trabalho. Essa, pelo menos, era a sensação de parte dos monges, que acabou se separando e fundando uma nova ordem, a cisterciense.
Com foco renovado em disciplina e trabalho manual, os cirtercienses tomaram dos beneditinos o domínio da vinicultura francesa. Ao longo do século 12, eles comandaram uma série de experimentos de qualidade na Borgonha, transformando a região em um laboratório de excelência.
Estudaram variedades de uva detalhadamente e notaram que a terra onde determinado vinho era produzido dava uma característica específica. Assim, redescobriram o terroir, um conceito já conhecido pelos antigos egípcios. Outra enorme contribuição da ordem foi o desenvolvimento da mais importante das uvas brancas, a chardonnay.
Atualmente, ainda há quatro mosteiros que produzem vinho no país, segundo uma reportagem da revista "France Today". O mais reconhecido deles é o da abadia de Lérins, na Ilha Saint-Honorat, onde os monges fazem tintos e brancos, entre eles o premiado Saint Pierre, assemblage com 70% de chardonnay e 30% de clairette.
A ilha fica a 15 minutos de barco de Cannes. Mais informações em https://abbayedelerins.com/site/fr/.
Para quem quer algo ainda mais raro, na pequena vila de Jouques, na Provença, fica a abadia Notre-Dame de Fidelité, a última do país em que freiras comandam a produção de vinho. Mais informações em https://www.abbayedejouques.org/
Licores e afins
Acredita-se que, em 1605, um marechal francês chamado François Hannibal d'Estrées entregou a monges da Ordem dos Cartuxos, em Vauvert, na Occitânia, sul da França, um manuscrito alquímico que conteria um certo "elixir da vida".
Esses cartuxos eram especialistas em botânica e dominavam o uso de ervas medicinais, mas não conseguiram decifrar o texto e replicar a receita. Trancafiaram o manuscrito e o esqueceram por mais de século.
Uma nova geração de monges redescobriu a fórmula e a compartilhou com seus irmãos na sede da ordem, próxima dos Alpes franceses. Com ervas alpinas à disposição, eles renovaram a luta até que, em 1737, chegaram a uma fórmula para o elixir. Batizaram a bebida em homenagem às montanhas da região (cujo nome também inspirou o da própria ordem): Elixir Végétal de la Grande-Chartreuse.
Com 69% de graduação alcoólica, foi o primeiro rótulo de um dos licores mais emblemáticos do mundo.
"Tem uma aura de mistério, de provocação, que o transforma em algo mais que um simples drinque para após as refeições", escreveu Michael Jackson no clássico "Guia Internacional do Bar" - o autor inglês, morto em 2007, era uma sumidade em cerveja, uísque e bebidas em geral, mas, com tal nome, ele sempre precisa de um asterisco. "Michael Jackson, o escritor, não aquele outro."
Os cartuxos ainda passaram mais algumas décadas aperfeiçoando a fórmula, e a produção comercial começou apenas em 1848. Eles enfrentaram revoluções e guerras, exilaram-se na Espanha, mas o licor prosperou.
São duas versões principais, a verde (55%), feita com 130 ervas, e a amarela (40%). Nenhum corante artificial, apesar do aspecto quase berrante. Elas são tão coloridas, aliás, que "chartreuse" virou nome de cor, algo que um empolgado e beberrão Quentin Tarantino lembra ao entornar uma dose em "À Prova de Morte" (2007).
Mas, se, apesar de tudo, o Chartreuse soa como um licor batido demais, à venda em qualquer boa loja de bebidas, procure o Stellina, que é basicamente uma versão mais jovem, de 1903. Tem fórmula misteriosa, muito álcool, à base de ervas, nas versões verde e amarela e foi criada em uma congregação católica francesa (Sagrada Família de Belley). Mais informações aqui http://www.stellina.fr/produits-collections.html
Que contar do famoso Bénédictine? O licor de ervas, plantas e cascas teria sido criado em 1510 por monges beneditinos da Normandia, em um mosteiro destruído na Revolução Francesa. A fórmula teria sumido do mapa até 1863, quando miraculosamente caiu no colo de Alexandre le Grand, descendente de um provedor do mosteiro.
A história é boa demais para ser verdade. Le Grand a usou para divulgar seu licor, reforçando a mística religiosa com uma garrafa distinta, enfeitada com um selo escrito "DOM" (do latim Deo Optimo Maximo, algo como "Deus, o melhor, o maior"). Ou seja, puro marketing, apenas uma anedota mais sofisticada do que aquelas de sucos de caixinha que dizem no verso que as frutas vêm do bucólico sítio de um senhorzinho?
E as cervejas?
Os beneditinos e os cistercienses seguiram na divina missão de montar o bar da humanidade. Como pregava São Bento, Ora et labora. Ora pois.
Nas regiões da Europa onde era mais difícil cultivar vinhas, ou onde o costume ancestral era a cerveja (em geral, uma coisa estava ligada à outra), os monges aplicavam sua técnica e dedicação à cevada. Em 1040, os beneditinos fundaram o mosteiro de Weihenstephan, na Baviera.
Em 1240, os premonstratenses, ordem criada por São Norberto e muito influenciada pelos ideais cistercienses, ergueram a abadia Leffe, na Valônia. Apenas para ficar em dois exemplos, um alemão e um belga, de grandes e consagradas cervejarias.
Isso sem contar a genial Hildegarda de Bingen, monja beneditina do século 12. Teóloga, naturalista, santa e doutora da Igreja, ela descobriu que o lúpulo tem propriedades conservantes quando adicionado à cerveja - tal qualidade levou à adoção e à popularização da flor nas receitas pelos séculos seguintes.
Hoje, na Alemanha, há 24 cervejarias controladas por beneditinos, metade delas na Baviera, segundo a revista "Beer Business". Weltenburger e Klosterbraurei Andechs são algumas dessas instituições que fazem cerveja e recebem turistas em seus jardins. Outras passaram à iniciativa privada ou até ao governo, como a Weihenstephan, mas seguem preceitos da produção monástica.
Os beneditinos trilharam um caminho na tradição cervejeira, mas, hoje, os monges mais lembrados são outros, que também surgiram de uma ramificação decorrente da ordem. Em 1664, surgiu a Ordem dos Cistercienses Reformados de Estrita Observância. Eram seguidores rigorosos da Regra de São Bento, daí o "Estrita Observância". A abadia normanda onde a ordem foi criada, La Trappe, gerou o apelido pelo qual eles acabaram mais conhecidos: trapistas.
Os trapistas produzem pães, queijos, frutas, roupas e até caixões. Mas o que lhes deu fama mundial e fez você chegar a este texto é a cerveja, evidentemente. Há mosteiros trapistas em todos os continentes, mas só 14 são reconhecidos como fabricantes de cerveja trapista. Seis estão na Bélgica, dois nos Países Baixos e o resto se espalha por Áustria, Itália, Reino Unido, França e Estados Unidos (um em cada).
Para ser considerada trapista, a cerveja deve ter sido feita dentro do mosteiro, por monges (ou sob sua observação). A produção não pode ser a principal atividade do mosteiro e não pode gerar lucro. O dinheiro serve para a sobrevivência dos monges, manutenção das instalações e doação para obras assistenciais. Em suma, trapista é um modo de produção, não um estilo de cerveja.
Mas quem reconheceu esses 14? A Associação Trapista Internacional, entidade fundada pelas próprias cervejarias trapistas belgas e holandesas como forma de se proteger mercadologicamente e se diferenciar das marcas "tipo abadia" que estavam surgindo. Deu certo e elas continuam se destacando com algumas das melhores cervejas do planeta.
Os mosteiros são abertos para turistas, com certas restrições (em algumas, você conhece apenas um centro de visitação e não vê a produção, por exemplo). Mas é só lembrar do tamanho da Bélgica e da Holanda, que concentram oito das 14 trapistas, para se querer fazer as malas.
Existem tours dedicados, excursões e mapas online para explorar a cultura cervejeira belga. A maior distância entre os mosteiros trapistas é de 285 quilômetros, da Brasserie d'Orval, no sudeste da Bélgica, fronteira com a França, até a fabricante da La Trappe, já na Holanda (o nome é uma homenagem ao mosteiro francês onde nasceu a ordem trapista).
Entre as cultuadas Chimay e Rochefort, são meros 68 quilômetros. Dá para se empolgar e fazer uma romaria cervejeira de respeito.
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