Como o gim tônica salvou o Império Britânico. Ou quase isso
A malária é uma doença conhecida há milhares de anos. Médicos tanto do Império Romano como do Reino do Mali já sabiam, por exemplo, que ela tinha ligação com mosquitos. Mas, apesar de tantos avanços na medicina, ela continua temida. Só em 2018 foram 405 mil mortos, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Em certo momento de sua fatal trajetória, a malária teve o gim (sim, o destilado) como inimigo. Mas vamos começar pelo início...
A malária se espalha facilmente, por meio da picada da fêmea do mosquito Anopheles infectada com o microrganismo Plasmodium. Água parada, climas tropicais, regiões pobres são o cenário preferido da doença, considerada a mais mortal da História.
Ainda não há uma vacina comercialmente disponível para todo o mundo, embora aquelas ainda em fase de teste tenham mostrado resultados promissores, de acordo com a OMS. Por isso, quase metade da população mundial ainda está sujeita ao perigo. A imensa maioria fica na África subsaariana, mas outras regiões de risco incluem a América Latina, o Sudeste Asiático e o subcontinente indiano.
Um tanto de história
A Índia, em séculos passados tinha um poder de atrair colonizadores estrangeiros do tamanho de sua capacidade de infectar invasores com moléstias tropicais. Os muçulmanos tiveram seu auge no século 17 com a dinastia mugal (ou mogul). Europeus também chegaram, de olho nas especiarias. Portugueses, holandeses, franceses e ingleses tinham companhias de comércio e fundaram cidades, como Calcutá, obra coordenada pelos britânicos, em 1690.
Com o tempo, à medida que o Império Mugal definhava, os ingleses aumentavam seus pegajosos tentáculos nessa grande vaca dourada. Derrotaram os franceses em uma guerra e expandiram o domínio colonial. Mas o custo humano era absurdo, por causa, exatamente, de doenças como malária.
Felizmente, para os ingleses, havia técnicas para contornar o problema. Cortesia de outro império que ocupou, pretensamente, o cargo de "dono do mundo", os espanhóis.
No século 17, eles aprenderam com os incas que a casca de uma planta chamada cinchona era eficaz no tratamento de malária. Os jesuítas levaram mudas de cinchona para a Europa e, no século 18, químicos franceses conseguiram isolar a quinina, a substância responsável pelos efeitos. Com o pozinho mágico da cinchona, os europeus ganharam uma arma poderosa para exercerem o que sabiam melhor, conquistar outros povos.
E o gim com isso?
Nos anos 1840, os britânicos consumiam 700 toneladas de casca de cinchona por ano. Ela ajudava soldados e oficiais a sobreviver nas áreas mais tropicais e úmidas da Índia. A água do país, na visão dos ingleses, tinha a reputação de ser esgoto bruto, então a solução era a mesma que muitos europeus faziam na Idade Média para evitar doenças: menos água, mais cachaça. No caso, gim.
Calcutá era a sede da Índia britânica. Os ingleses faziam refeições pesadas, ricas em carne, acompanhadas de muito vinho fortificado e ponches com doses generosas de álcool, na crença de que isso os tornaria menos propensos a males como tifo e hepatite, além da malária. As bebidas fluíam o dia todo, e todas as noites, para fortificarem seus corpos contra o Plasmodium, os colonos tomavam quinina.
Mas havia um porém. Quinina é amarga demais da conta, então, para amolecer o trago, eles misturavam com seu destilado nacional, a "mãe gim", como o gim é conhecido, em uma conotação nem sempre positiva. "Adicionavam gim para cortar o amargor e, principalmente, por seu efeito intoxicante", diz o historiador Timothy C. Winegard no livro "Mosquito: A Human History of our Deadliest Predator", de 2019 ("Mosquito: uma história humana de nosso mais mortífero predador", sem edição brasileira).
Em 1858, após uma devastadora rebelião, a coroa britânica assumiu diretamente o controle da Índia, encerrando as atividades da Companhia Britânica das Índias Orientais no subcontinente.
Coincidentemente, no mesmo ano, um manipulador de águas gaseificadas chamado Erasmus Bond melhorou a vida dos colonos e lançou, em 1858, a água tônica, refrigerante que levava quinina na fórmula.
A mistura fez sucesso imediato e rapidamente os britânicos que voltavam ao Reino Unido a popularizaram no país. Na década de 1870, a companhia de bebidas Schweppes lançou sua marca de água tônica, uma das mais conhecidas até hoje.
A combinação do gim inglês com a indiana água tônica dominou Londres, as casas noturnas, os clubes de golfe e a cultura coqueteleira dos anos 1920. O gim tônica virou um drinque nacional.
Uma frase atribuída a Winston Churchill diz que essa mistura 'salvou mais vidas e mentes inglesas do que todos os médicos do império'.
O drinque colaborou um bocado para os ingleses controlarem a Índia e metade da África até o século 20. Mas, no fim, o Império Britânico se juntou ao Mugal e virou história, com os processos de independência ao longo do século passado.
O gim tônica pode ter poupado a vida de muitos ingleses nos outros continentes, porém o domínio britânico da Índia, que conquistou a independência em 1947, foi uma das experiências mais mortíferas de todos os tempos, segundo o pesquisador Matthew White, especialista em grandes tragédias, em "O Grande Livro das Coisas Horríveis".
Em três grandes crises de fome nos séculos 18 e 19, causadas por uma mistura nefasta de colapso econômico, negligência, seca, má administração e racismo, 26,6 milhões de pessoas morreram. Só para ilustrar: a população mundial explodiu no fim do século 19. O Brasil saltou de 9,9 milhões, em 1870, para 17,4 milhões, em 1900, segundo o IBGE. Entre 1895 e 1905, a população da Índia diminuiu pela única vez em sua história, desde que os recenseamentos começaram.
Gim tônica pós-império
Mas a mistura de gim com quinina perdurou, felizmente. O gim tônica passou décadas meio esquecido, até ganhar vida nova mais recentemente, com a recente onda da coquetelaria.
No início dos anos 2010, bares da Espanha, de Portugal e depois de outros países começaram a servi-lo em grandes taças, com infusões, flores, especiarias e muito gelo, o que atraiu um público maior, mais jovem e mais feminino ao drinque inglês.
A moda pegou, graças também ao impulso que o gim ganhou na mesma época. O destilado, que também andava largado nas prateleiras dos bares, voltou com tudo. Em 2010, havia 110 fábricas no Reino Unido. Em 2016, o número praticamente dobrou e, pela primeira vez, a indústria inglesa ultrapassou a marca de 1 bilhão de libras em vendas (R$ 7,4 bilhões, em valores atuais).
Em 2019, ela chegou a 18,6 bilhões de libras, de acordo com a WSTA, associação de comerciantes de vinhos e destilados ingleses. Até o Brasil passou a ter novas, e premiadas, marcas, dando aromas e sabores mais tropicais ao destilado britânico. O império pode ter acabado, mas seu legado segue firme e forte Graças à quinina.
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