Rainha do acarajé, Cira deixa legado de trabalho e lições de generosidade
Um dia antes de ser internada, Cira do Acarajé fez um pedido. Ela já dava sinais de fraqueza, mas insistiu para ser levada a um shopping de Salvador onde comprou roupas para as três crianças que criava, o neto Davi Ricardo, de 15 anos, que morava com ela desde os primeiros meses de vida, Enzo Gabriel, 7, e Anita, 4, que estavam em processo de adoção.
Foi a última coisa que Jaciara de Jesus Santos, uma das quituteiras mais famosas de Salvador, conseguiu fazer antes de ser levada ao Hospital São Raphael, onde morreria 18 dias depois, aos 70 anos, nesta sexta-feira (4).
Rainha do acarajé e da generosidade
"Ela sempre gostou de ajudar outros, e não era só a família não. Eu mesmo a vi tirando dinheiro do bolso pra levantar uma casa para uma mulher que ela nem conhecia, só porque era amiga da minha mãe", relata Ana Paula Almeida da Cruz, ex-nora de Cira.
O casamento entre ela e o filho mais velho de Cira durou apenas três anos, mas a relação pessoal e profissional com a ex-sogra atravessou duas décadas e lhe rendeu como herança o ponto de Itapuã, onde Cira iniciou uma das mais incríveis jornadas de sucesso de crítica e público da história do maior símbolo identitário da culinária baiana: o acarajé.
"Eu vou guardar o carinho, a convivência, o apoio que eu não vou achar de mais ninguém e que eu tive de minha parceira de todos os momentos bons e ruins que vivemos juntas", diz ela
O corpo de Jacira de Jesus, 70, será enterrado às 10h deste sábado (5), no Cemitério de Itapuã, bairro em que ela construiu uma fama de cozinheira de mão cheia. Ela deixa cinco filhos, oito netos biológicos, uma legião de admiradores de seu quitute leve, crocante, cheiroso e saboroso e um empreendimento que sustentou três gerações da família e deu asas à sua generosidade.
Cira tinha um coração imenso. No período da pandemia, ela mandou um carro carregado de sabonete, detergente, água sanitária e papel higiênico que doamos para mais de 60 baianas que passavam por dificuldades. Sempre foi assim, estava sempre disposta a ajudar. Ela tinha uma fisionomia fechada por fora, mas um coração imenso por dentro
Rita Santos, presidente da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (Abam)
Cira iniciou no tabuleiro aos 12 anos de idade. Aos 17, assumiu a responsabilidade de cuidar de quatro irmãos mais novos quando perdeu sua mãe. Rita acredita que os problemas renais que levaram Cira tenham relação com a sua atividade.
"Infelizmente nossa profissão exige que a gente fique várias horas por dia sem sair do ponto de venda nem mesmo pra ir ao sanitário. É muito comum baiana de acarajé com problema nos rins", informou.
"Foi muito reconfortante para a nossa família receber o carinho de muitas pessoas de Salvador e de muitas pessoas de fora da Bahia e do Brasil também. Estamos muito gratos", diz a filha mais velha de Cira, Cristiane, responsável pelo Acarajé da Cira de Lauro de Freitas, cidade vizinha de Salvador.
Filas intermináveis
Além deste e de Itapuã, a franquia mantém pontos em outros três pontos. No bairro soteropolitano de Rio Vermelho, ela rivalizava com Regina dos Santos Conceição e Dinha (Lindinalva de Assis) pelo título de melhor acarajé de Salvador.
Estima-se que os cinco pontos juntos vendam mais de dois mil acarajés por semana, mas os números são mantidos sob sigilo pelos familiares responsáveis pelo negócio. Há mais de 20 anos, Cira desponta como a mais bem sucedida baiana de acarajé da capital baiana, com filas intermináveis de apreciadores que não se importam com o tempo de demora, desde que fossem atendidos pessoalmente por ela.
O sucesso da barraca já foi medido pela quantidade de matéria-prima usada por Cira em comparação com concorrentes. "Em 1996 nós fizemos um levantamento e descobrimos que enquanto a média na orla da península itapagipana era de três quilos de feijão fradinho, Cira já superava a marca dos 10 quilos semanais", compara a professora de administração Tânia Maria da Cunha Dias, autora de 'A Baiana de Acarajé, uma Empresa Familiar de Sucesso', dissertação mestrado que defendeu pela Faculdade de administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Inovação no acarajé
Tânia Maria aponta que não foi de Cira a inovação de espalhar o empreendimento em vários pontos da cidade, mas, sim, de Chica, que mantinha uma barraca na Pituba enquanto seus filhos mantinham pontos abertos no Shopping Barra, em Piatá, e até mesmo em Aracaju.
A diferença é que, enquanto os concorrentes abriam um ponto com um nome diferente em cada localidade, Cira usou a mesma marca em todos os lugares.
Assim como aconteceu com Dinha [morta em 2008], o Acarajé da Cira vai sobreviver porque é uma marca consolidada. O trabalho que elas aprenderam com suas mães continua a ser desenvolvido por suas descendentes
Tânia Maria da Cunha Dias, professora de administração
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