Beba menos, beba melhor: poeta alemão já pregava a moderação no século 16
"Se você for bom com ela, você fortalecerá a devoção e o amor de sua esposa: dê-lhe vinho, beba com ela, e você terá mais prazer com um único gole do que saindo e esvaziando garrafas inteiras de vinho."
Podia ser o texto de um livro de autoajuda contemporâneo. Mas é um manual escrito em 1536 por um alemão que se preocupava com um mal crescente em sua época, o alcoolismo. Vicente Obsopoeus foi um poeta e escritor da Baviera que se especializou em traduzir obras do latim no contexto da Reforma Protestante (a tradução em massa era um dos pilares dos reformistas da Igreja).
Esse humanista bávaro trabalhava como diretor de escola e traduziu também textos gregos e alemães, incluindo alguns do próprio Martinho Lutero. Mas seu trabalho mais significativo foi ter escrito, do próprio punho, "De Arte Bibendi", ou "A Arte de Beber". É a primeira publicação de que se tem notícia a chamar a atenção para os problemas do exagero com a bebida.
Este ano, o livro ganhou uma nova tradução, do latim para o inglês, feita por Michael Fontaine, professor de estudos clássicos na Universidade Cornell, nos Estados Unidos. Intitulada "How to Drink: A Classical Guide to the Art of Imbibing" (ou "Como beber: um guia clássico para a arte de tomar umas", em tradução livre), a nova versão desse esquecido clássico traz algumas contextualizações interessantes.
Segundo Fontaine, apesar de a humanidade consumir bebidas alcoólicas há milhares de anos (cerveja e vinho nos acompanham desde a infância da Revolução Agrícola, quando deixamos de ser caçadores-coletores), foi só há cerca de 500 anos que porres pesados se tornaram comuns o suficiente para virar um problema da sociedade.
"As Cruzadas acabaram, a economia estava mudando e os cavaleiros do mundo medieval não tinham mais propósito em suas vidas. Eles se voltaram ao vinho para preencher esse vazio. Justas cederam lugar a jogos alcoólicos", escreve, referindo-se aos duelos típicos de cavaleiros da Idade Média.
Além disso, os vinhedos alemães cresceram quatro vezes de tamanho. Resultado: no século 15 os alemães estavam bebendo 120 litros de vinho per capita ao ano, seis vezes mais do que o consumo atual.
Há outro fator importante, não mencionado no prefácio da obra, que contribuiu para essa nova realidade bêbada: a disseminação dos destilados.
Os árabes introduziram o alambique na Europa a partir do Emirado da Sicília, no século 12, onde surgiu a primeira evidência de uma bebida destilada produzida no continente. Desde então, culturas e matérias-primas diferentes deram à luz todo um novo - e bem mais pesado - ramo alcoólico, dos mais populares, como vodca e cachaça, aos mais locais, como o alemão korn, feito de cereais e que surgiu no século 15, quase na mesma época em que Obsopoeus viveu.
Moralismo etílico
Era esse o mundo do poeta, com mais homens ociosos, maior oferta de vinho e novas e mais perigosas bebidas. Claramente inspirado pelo clássico romano "A Arte de Amar", de Ovídio, ele não defendia a abstenção total de álcool, mas o consumo consciente. Até porque o título é "A Arte de Beber", não a "A Arte de Ficar Sóbrio", o que demanda outros talentos.
Obsopoeus queria, com seu livro, ajudar os jovens a serem responsáveis e a encontrarem esposas. "Seu texto descortina o nascimento de uma nova e venenosa cultura de trotes, pressões de grupo, bebedeiras competitivas e até o que alguns chamam hoje de 'masculinidade tóxica'", explica Fontaine. Em resumo, uma obra que ensinava a lidar com aqueles que insistem na nociva máxima do "não aguenta, bebe leite".
A associação dos excessos com bebida a um comportamento masculino é nítida na obra e algo tristemente contemporâneo, quando ainda vemos manchetes como "Desafiado por 'amigos', homem toma 1,2 l de cachaça e morre por intoxicação".
"Quando os rapazes estão bêbados eles se gabam de suas ereções duras como madeira", escreveu o poeta.
Contam vantagem sobre aventuras sexuais atrevidas. Eles se tornam cobras cheias de porcos e lagartos: estão cuspindo veneno de cobra pela boca. O veneno deles é mais perigoso que o de uma víbora viva? Ou o de um dragão."
Faça o que eu digo...
"A Arte de Beber" saiu em 1536 e ganhou uma edição expandida no ano seguinte, o que mostra sua popularidade, a ponto de a Igreja o incluir em seu Index de proibidões. Ela ajudava o leitor a conter impulsos, e ainda assim fazer amigos e impressionar as pessoas. Caso não desse para escapar de uma competição alcoólica, tudo bem, ninguém é de ferro, o livro também ensina a ir bem nos joguinhos graças à própria experiência do autor.
Obsopoeus sabia do que falava. Ele tinha um longo histórico de bebedor de vinho, o que lhe teria custado amizades e empregos. "Este livro é produto da experiência", escreveu. "Não é falso nem nenhum tipo de arapuca. Esta Arte nasceu do suor de muita bebedeira. É o que há de melhor, crianças, e eu estou passando para vocês."
Desses anos de sofrimento e exageros frente ao álcool brotou "A Arte de Beber", um guia espirituoso e bem-humorado, apesar de francamente moralista. Na introdução da nova edição, Fontaine elogia a qualidade técnica da poesia do alemão, como o uso de palavras de duplo sentido:
"Por exemplo, em latim, sinus quer dizer 'colo' ou 'seio' e a sinun (uma palavra separada) é uma tigela em que se bebe vinho. Além disso, fundere significa 'derramar o líquido', literalmente, ou 'derramar pensamentos', metaforicamente. 'Confessá-los'. Obsopoeus combina ambos em um trocadilho brilhante, em que ele aconselha a beber em casa com sua esposa: ... semper fidissima coniunx, cuius in audebis fundere quaeque sinum ('você pode confiar em sua esposa completamente, sempre. Você pode beber com ela e derramar o seu coração no peito dela')."
Mulher melhor que amigos
Obsopoeus reforça na obra que encontrar aquele alguém especial é de suma importância para controlar os exageros. "Para começo de conversa, existem três jeitos de beber: em casa, sozinho; sair e encontrar amigos; ou em funções sociais". Em todos existe a possibilidade do excesso, mas, se o necessitado leitor encontrar uma boa esposa, ela substitui, com vantagens, os amigos que são má influência.
Ela compartilhará sua ansiedade em tempos de problemas e sua dedicação e energia sustentarão o lar.
Uma esposa compreende suas preocupações completamente, e combina as chamas do seu coração com igual amor. Ela compartilha suas tragédias como uma parceira igual, sempre. Ela o agrada com o casto presente da Vênus e, com frequência, faz de você um pai, orgulhoso de um novo filho ou filha."
A essa altura, o livro parece mais uma defesa do casamento do que um panfleto antiálcool, mas os motivos pragmáticos ficam claros a seguir:
"Em casa, você pode dizer ou fazer qualquer coisa, você é o rei em sua casa. Ninguém que você pudesse ofender está bebendo contigo. Sua mulher é a única saboreando o doce do álcool com você, e ela está acostumada há muito tempo com quem você é. Ela já sabe sua vida, sabe como lidar contigo; e ela não vai pensar que você está lá fora, curtindo por conta própria enquanto ela ficou largada em casa sentada, sozinha, desejando também tomar um trago."
Obsopoeus, em seguida, enumera as vantagens de se beber em casa em vez de ficar no bar até ser jogado para fora. "Você evitará um punhado de irritações que tem que lidar quando sai para beber: deboche pelas costas, piadas desagradáveis, piadas às suas custas, provocações inconvenientes de algum espertinho."
Não que o poeta fosse contra a ideia de beber com os amigos. Mas é preciso saber as companhias, segundo o manual. Ele recomenda pessoas com temperamento semelhante, que sejam "diplomáticas e modestas no linguajar". Aconselha ainda sair apenas com "amigos cuja qualidade e lealdade sejam comprovadas e evidentes".
As duas regras de ouro de Obsoepeus
- Se você beber de maneira ignorante, o vinho irá machucá-lo.
- Se você for educado sobre como beber, entretanto, o vinho é agradável e bom.
Uma aula que, apesar de passados quase 500 anos, continua atual e merece ser levada a tiracolo. Ainda mais nas muitas celebrações de fim de ano.
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