Três mulheres e um monge inventaram o champanhe como o conhecemos
Os vinhos espumantes são uma criação relativamente nova da humanidade. Se os registros mais antigos de vinho têm 8 ou 9 mil anos, a versão borbulhante não tem nem 400 anos.
Naquela época, as bolhas surgiam acidentalmente e eram vistas como um defeito, a ponto de os monges vinicultores o chamarem de "vinho do diabo". Felizmente, as borbulhas foram domadas, a bebida se desenvolveu, conquistou nobres, princesas, burgueses e festeiros em geral pelos séculos seguintes.
Muito disso se deve a três mulheres ricas, poderosas, sofisticadas e influentes, que superaram os estigmas de gênero de seu tempo e ajudaram a criar a indústria mais influenciada pelo sexo feminino da história.
Antes delas, um monge beneditino, no austero mosteiro em que vivia e trabalhava, também desempenhou um papel essencial, mas recheado de inverdades. Até hoje, todos eles são celebrados em algumas das mais famosas casas de champanhe do mundo.
Hora de celebrá-los. E mandar aquele "já vai tarde" para 2020!
Monge Pérignon
Nos séculos 17 e 18, em vida, ele conseguiu algumas proezas. Nos séculos 19 e 20, ficou famoso por algo que, na verdade, não fez. Pierre Pérignon foi um monge beneditino que viveu e trabalhou a maior parte da vida na abadia de Hautvillers, no nordeste da França. Credita-se a ele a invenção do vinho espumante na região francesa da Champagne. Mas, quando o monge viveu (1638-1715), as bolhas no vinho eram vistas como um defeito e um perigo, que poderia transformar garrafas em bombas-relógio.
Para se produzir vinho, uvas maduras, ricas em açúcares, são colhidas e esmagadas. Esse suco vai para barris, onde as leveduras, um microrganismo presente na uva, começam a consumir o açúcar da fruta. Dessa reação orgânica surgem dois subprodutos, gás carbônico e álcool. Basicamente, eis o milagre da fermentação. O gás escapa para o ar, o álcool fica.
Mais alguns procedimentos depois, o vinho é estocado em barris fechados para ficar mais suave. O problema é que, às vezes, as leveduras não comiam todo o açúcar e adormeciam na bebida. Quando chegava a primavera, com o calor, elas despertavam e voltavam a devorar o açúcar, causando uma segunda fermentação. Como os barris estavam fechados, o gás não saía e surgia uma espuma.
Na década de 1660, quando Pérignon era mestre da adega da abadia, as borbulhas estavam surgindo com cada vez maior frequência, porque os invernos estavam chegando mais rápido e eram mais rigorosos. Era o auge da chamada "pequena Era de Gelo", um período de alguns séculos em que as temperaturas despencaram na Europa.
Essa espuma que se formava nos barris deixava os vinhos intragáveis. Não pense você que eram as bolhas lindas que vemos em espumantes hoje. Mais tarde, com o desenvolvimento da bebida, os produtores notaram que somente vinhos muito bons melhoram com as bolhas, e que esse vinho básico é uma combinação (ou assemblage) de muitos tipos de uvas. Ou seja, é preciso bastante conhecimento e trabalho.
Nisso, Pérignon era um gênio. Suas combinações eram lendárias e influenciaram produtores de espumante das gerações seguintes, mas ele fazia vinho sem bolhas, e dedicou anos para tentar acabar com elas. Pérignon não queria descobrir uma bebida nova. Queria ajudar o comércio que seus irmãos clérigos dominavam, o de vinhos de boa qualidade.
Mesmo assim, o champanhe cresceu e floresceu, muito por causa de suas contribuições, como podas constantes nas vinhas e colheita nas horas mais frias do dia, com o cuidado de não machucar as uvas.
Menos de 200 anos após sua morte, quando a bebida já era consagrada, começou o festival de boataria. "Venham logo, venham todos! Estou bebendo as estrelas!", ele teria gritado aos outros monges de Hautvillers ao ter "descoberto" o champanhe.
A frase é linda, mas saiu da pena de um publicitário do século 19, quando surgiu o mito do inventor Pérignon. A história colou e ajudou a proteger o especial vinho da Champagne, associando-o ao trabalho árduo de um monge, e não à decadência aristocrática de outros espumantes vistos como imitadores. É o que explica a historiadora Kolleen Guy em um artigo na revista acadêmica French Historical Studies sobre o marketing do champanhe na Belle Époque.
Deu certo para a bebida, que em 1927 ganhou denominação de origem controlada (AOC, na sigla em francês). Dessa forma, só o vinho espumante produzido na Champagne é champanhe. O resto é o resto.
Deu certo também para Pérignon. Ele pode não ter inventado o champanhe, mas suas enormes contribuições foram devidamente homenageadas em 1921, quando a Möet & Chandon lançou a marca Dom Pérignon, uma das mais famosas do mundo e cujas garrafas já foram vendidas em leilões por muitos milhares de dólares.
Madame de Pompadour
Jeanne Antoinette Poisson, a Madame de Pompadour (1721-1764), entrou para a história como a poderosa e influente maîtresse-en-titre, a amante chefe do rei Luís 15. Era uma influenciadora para valer, "real oficial," que gerava moda por onde passava. Ajudou a divulgar o rococó, patrocinou escultores e pintores e mantinha a própria prensa em constante movimento, imprimindo livros para sua biblioteca pessoal.
No século 18, ela elevou o hábito de tomar champanhe na corte francesa de Luís 15 ao delírio. Não foi uma moda que surgiu do nada. Luís 14, o antecessor de seu amante, só queria saber de vinho borbulhante da Champagne, e os ingleses, que eram fãs da bebida, tomavam muito, graças às mudanças providenciais que eles mesmos introduziram.
Seus fornos a carvão produziam garrafas mais resistentes do que os fornos franceses, alimentados com madeira. Eles também resgataram o uso romano de rolhas - no tempo de Pérignon, usavam-se trapos encharcados de óleo para selar as garrafas. Além disso, um cientista inglês, Christopher Merret, foi o primeiro a documentar o acréscimo de açúcar para formar bolhas no vinho, em 1662. Sim, antes de Dom Pérignon.
Mas foi a relação de Pompadour com um comerciante da Champagne que selou a entrada da bebida nas altas rodas francesas e, consequentemente, a sua associação a festas e sofisticação. Isso sem contar o pequeno detalhe que a família de Pompadour tinha lucrativas terras na Champagne. Graças a ela, esse empresário, chamado Claude Möet, fez com que seu vinho fluísse cada vez mais em Versalhes.
A Möet et Cie surgiu em 1743 e virou Möet et Chandon em 1833. Em mais de 200 anos, tornou-se uma marca poderosa de luxo. Em 2018, homenageou Pompadour com uma edição limitada de champanhe rosé que faz uma releitura contemporânea de um baile de máscaras na corte.
Champanhe é o único vinho que deixa uma mulher bonita depois de bebê-lo", ela teria dito.
Falava-se também que a taça usada para tomar champanhe teria usado os seios de Pompadour como molde (outras versões citam Maria Antonieta ou Helena de Troia - afinal, os gregos já tinham suas taças-seios, com direito até a mamilos). A mística da pomposa e refinada Pompadour segue lado a lado à do frugal beneditino Pérignon.
Viúva Clicquot
Em 1740, a moda do champanhe acabou repentinamente. Produtores e distribuidores inflaram o mercado de espumantes, encharcando os salões nobres com bebida de má qualidade, em busca de dinheiro fácil. Isso quebrou as pernas dos vinicultores da Champagne, cuja reputação acabou abalada.
No fim do século, a situação começou a melhorar para eles, com novos e engajados produtores. Mas alguns problemas persistiam. Garrafas ainda explodiam vez ou outra e os vinicultores não tinham como aumentar a fabricação de forma rentável e segura.
Isso mudou com Barbe-Nicole Clicquot Ponsardin (1777-1866). Em 1805 ela perdeu o marido, um produtor da Champagne e, mesmo sem experiência com negócios e sem dominar a produção do vinho, transformou a indústria com uma marca que evidenciava a sua condição de mulher na sociedade francesa do começo do século retrasado: aquela bebida passaria a ser conhecida como a da viúva Clicquot.
A Veuve Clicquot desenvolveu técnicas essenciais no chamado método tradicional, também conhecido como champenoise. É o caso do remuage, em que as garrafas ficam em um suporte, inclinadas de cabeça para baixo. Regularmente, o produtor girava as garrafas, o que desgruda as borras das paredes do vidro. Já no dégorgement eles removiam as borras, concentradas no gargalo graças à etapa anterior. Assim, era possível retirar os resíduos sem desperdiçar muita bebida.
Sem essas técnicas, propagadas pela Veuve Clicquot, o champanhe seria uma bebida exclusiva de nobres e ricaços. Certo, ela ainda é uma bebida relativamente cara, você pode dizer. Mas seria muito mais e jamais teria a fama que ganhou. Champanhe poderia ser apenas mais um vinho espumante de relevância cultural muito menor, como o alemão sekt ou o húngaro pezsgő.
Só que isso não aconteceu. O remuage permitiu às vinícolas aumentarem sua produção e fazerem um champanhe límpido e dourado, que caiu no gosto da nova burguesia que ascendeu após a Revolução Francesa. O desenvolvimento da indústria e dos conhecimentos de química também ajudaram um bocado. Garrafas mais fortes resistiam à pressão, rolhas mais modernas selavam melhor a bebida e os produtores sabiam quanto de açúcar era necessário para produzir bolhas sem explodir.
"Tudo isso mudou nas primeiras décadas do século 19, graças à determinação e aos recursos de uma meia dúzia de importantes investidores e vinicultores, que viram um maior potencial nos espumantes produzidos das vinhas nas encostas que se estendem ao sul da cidade de Reims", escreve a historiadora americana Tilar J. Mazzeo no livro A Viúva Clicquot.
"No período de uma única geração, o champanhe escapou da derrapagem rumo à periferia comercial para se tornar uma possante locomotiva da economia. De 1790 a 1830, as vendas cresceram quase 1.000%, passando de umas poucas centenas de milhares de garrafas a mais de 5 milhões por ano. No despontar do século 20, antes mesmo que a Era do Jazz fizesse do champanhe o símbolo de uma época, o mundo já comprava 20 milhões de garrafas do espumante por ano."
Barbe-Nicole Clicquot tornou-se uma das primeiras mulheres da história a comandar uma empresa de alcance internacional. Conseguiu isso graças também a boas doses de marketing malandro. Mesmo nos anos conturbados das Guerras Napoleônicas, ela driblava leis, portos fechados e estradas bloqueadas e dava um jeito de chegar a mercados de outros países da Europa, especialmente a Rússia, inimiga da França na época.
No fim da guerra, com a iminente derrota francesa, os russos ocuparam a região da Champagne, em 1814. Como podemos imaginar, beberam muito champanhe, inclusive o da viúva, cuja marca já era conhecida na Rússia. Clicquot disse: "hoje eles bebem, amanhã eles pagarão".
Sob esse ponto de vista, a pilhagem acabou virando fiado. A Rússia se tornou o segundo maior mercado de champanhe do mundo até a Revolução de 1917, segundo Don e Petie Kladstrup em "Champagne: How the World's Most Glamorous Wine Triumphed Over War and Hard Times" ("Champanhe: como o vinho mais glamouroso do mundo triunfou sobre guerra e tempos difíceis", sem edição brasileira).
Louise Pommery
Em uma aula prática de empoderamento feminino nos negócios da França do século 19, a viúva Clicquot abriu caminho para outra mulher que perdeu o marido e precisou arregaçar as mangas. Em 1860, Louise Pommery (1819-1890) assumiu a vinícola da família e tomou uma série de medidas ousadas.
Primeiro, abandonou a produção de vinho comum, focando apenas no espumante. Também se desfez do negócio de lã (antes do espumante, o forte da região era o setor têxtil). Depois, deixou em segundo plano os champanhes mais adocicados, tendo em vista o paladar dos ingleses, grandes clientes.
Sob o comando de Louise, a Pommery comprou poços de calcário construídos pelos romanos no subsolo de Reims e os usou para armazenar milhares de garrafas com toda a segurança que caves de pedra subterrâneas com temperatura constante de 10ºC podem oferecer. Outras casas da Champagne seguiram a prática, que se tornou comum.
Ao investir na preferência dos britânicos por espumantes mais secos, a Pommery também lançou outro padrão, o champanhe brut, adorado até hoje.
Como patroa, Louise inovou. Foi uma das primeiras empresárias francesas a criar planos de saúde e de aposentadoria para os empregados.
Merecidamente, ela foi a primeira mulher do país a ter um funeral com honras de Estado. Cerca de 20 mil pessoas se juntaram para se despedir desse grande ícone local. A pequenina cidade onde ela morreu, Chigny, mudou de nome para Chigny-les-Roses, em homenagem à paixão de Pommery por rosas. Uma paixão pragmática, pois é comum usar rosas em vinhedos porque elas funcionam como uma sirene do parreiral. Como adoecem facilmente, as rosas são as primeiras a sinalizar alguma doença nas vinhas.
No século 20, o champanhe enfrentou a praga da Phylloxera, perdeu o mercado russo para os bolcheviques e o americano para a Lei Seca e viu seus vinhedos transformados em campo de batalha nas duas guerras mundiais. É difícil imaginar que a bebida sobreviveria a tudo isso se não fosse por esses quatro personagens.
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