De Passo Fundo para o Ártico: brasileiro relata sua vida no "topo do mundo"
"O Cèu da Meia-Noite", novo filme da Netflix, conta a história sobre um cientista solitário no Ártico, interpretado pelo ator George Clooney, que corre para impedir um grupo de astronautas de voltarem para casa em meio a uma misteriosa catástrofe global. A história, por mais que seja uma ficção, remete a realidade de muitas pessoas que vivem nos extremos congelantes do mundo — sendo um deles Chicco Mattos.
Em conversa com Nossa, feita por meio de uma chamada de vídeo, o brasileiro de 40 anos narrou a saga que o fez sair de Passo Fundo, no interior do Rio Grande do Sul, para a vida no Ártico — mais exatamente em Lofoten, arquipélago na Noruega—, para onde se mudou no começo de 2020, embora sua trajetória tenha começado em Svalbard, território também norueguês, há cerca de 10 anos.
Entre as diversas viagens feitas com as mochilas nas costas, o ponta-pé, ainda mínimo, para a vida no Ártico teve início para Chicco na Austrália, onde estudava e conheceu a atual esposa, a sueca Mia.
Com o visto de estudante próximo ao fim, assim como o dinheiro na conta bancária, ele e a companheira decidiram "dar um tempo no Brasil". Em terras brasileiras, mais precisamente em Balneário do Camboriú, a ideia de se mudar para Svalbard começou a nascer, graças a uma amiga que já morava por lá e, aos poucos, o convenceu de que esse seria o seu próximo destino.
Minha mulher disse: 'você está louco?'. No final, apareci com as passagens compradas, o que fez com que não tivéssemos mais outro lugar para ir", complementa aos risos.
A mudança aconteceu. Entre trabalhos em hotéis e bares locais, na cidade com dois mil e quinhentos habitantes, o brasileiro que já trabalhava com audiovisual redescobriu a paixão pela fotografia e vídeos em Svalbard. O cenário digno de uma produção de cinema — a Netflix que o diga — abriu espaço para que ele começasse a fazer expedições para captar as imagens que o deslumbravam.
Quando questionado por mim sobre a mais especial delas, Chicco revisita rapidamente tudo o que já fez e brinca: "São tantas, mas dessa vez vou fazer diferente e te contar essa em especial". A partir daí, eu começaria a conhecer, pelas palavras dele, o lugar onde o tempo não existe; o Polo Norte.
Topo do mundo
Cravando o título de brasileiro que foi mais vezes ao Polo Norte na história, o passo-fundense faz questão de detalhar o espetáculo da viagem, feita em 2016: "É quando você olha no globo terrestre e todos os meridianos se encontram em um ponto. Eles convergem em um uma área de 1 m², esse é o Polo Norte".
Ali, como argumenta em seu discurso, não existe a marcação do tempo: "Não em horário. Você está no topo do mundo e ele está girando embaixo dos seus pés".
Esse aspecto, maravilhado por mim enquanto ele conta, no entanto vem acompanhado de extremismos. Os visitantes ficam em cima de uma placa de gelo, que se move a 300 metros por hora, e longe de qualquer civilização.
Não existe nada ao redor, só gelo flutuante".
Para chegar até lá é preciso embarcar em um jato russo, projetado especificamente para pouso e decolagem rápidos, em qualquer tipo de superfície. As barracas e mantimentos são jogados por um avião maior, que sobrevoa esse, e os responsáveis por limpar o gelo descem junto aos paraquedistas, para depois dirigirem os tratores que moldam a pista para que os visitantes, como Chicco, possam descer em terra firme — ou minimamente firme, pelo menos.
Tal firmeza não foi exatamente a experiência que o brasileiro viveu lá. Em plenos 42 ºC negativos, com cílios e olhos grudando, o gelo ao redor do acampamento complementou a aventura ao começar a se romper.
"Olhei para fora da barraca e vi uma rachadura, pensei: 'não, isso não é uma rachadura', Olhei pouco tempo depois, e estava ainda mais grosso, até o momento que chegou a quase um metro de distância e era possível ver a água no meio das placas", relembra
Entre saltos para salvar parte dos seus equipamentos, afastados pela separação do gelo, a estadia por lá se estendeu por mais três dias em consequência da instabilidade do terreno.
"Ficamos só na sopinha, feita com gelo derretido e macarrão instantâneo", conta ele ao citar a economia de mantimentos e combustível para aquecer as barracas.
Com a ajuda do drone de Chicco, literalmente desnorteado pela região em que estavam, foi possível fotografar o chão de longe e voltar para a casa.
"O gelo deu uma juntada de novo e, na da pista que tava rachada, colocaram gelo e água para congelar de novo e segurou", diz. "Depois disso, o avião conseguiu pousar e fomos embora. Foi especial, de alguma forma, guardo até hoje".
A vida no Ártico
"No inverno, não tem luz nenhuma. No verão, só luz", define Chicco sobre a vida na região. Em suas palavras, o sol desaparece no final de outubro e volta em fevereiro, especificamente na região em que ele morava em Svalbard.
"Quando vi a luz, depois de um tempo de escuridão, foi como se eu visse o sol pela primeira vez", comenta. "Não esqueci nunca mais dessa cena".
Entre os possíveis temas de conversa, a aurora boreal foi o primeiro elencado por mim. A experiência do brasileiro aconteceu no primeiro ano em que ele estava lá, enquanto ia ao supermercado após o pedido da esposa.
"O céu estava estranho, tinha quatro linhas paradas no alto, esbranquiçadas. Continuei andando, vi o verde no céu e pensei: 'meu, é a aurora'", conta, reforçando que o fenômeno só pode ser plenamente visto longe das luzes da cidade, principalmente quando não está muito forte.
Pergunto se a aurora é constante e ele a compara com a chuva: "Ela só acontece quando está escuro. Às vezes tem muito, outras vezes não".
A aurora é muito grande e quase nas estrelas, simplesmente lindo. Esse foi um dos momentos que eu decidi que as fotografaria durante as expedições".
Além das auroras, quem ganhou espaço na conversa foram os ursos polares: "Nos primeiros dois anos, dava pra contar quantos ursos, mas depois eu perdi as contas".
Durante as expedições, Chicco já "deu de cara" com vários deles: "Tem que estar calmo quando acontece esse encontro. É perigoso porque ele pode ir para cima de você. Tem que agir como predador, ou melhor, não agir como presa".
Um dos ursos é especial para o viajante. Na verdade, uma delas. Frost, como foi apelidada por ele e seu grupo, é presença marcada durante os passeios, desde 2012. Pergunto então como ele sabe quem é ela, entre tantos animais, seu argumento é como quem reconhece o animal de estimação da infância.
"Ah, a gente reconhece!", ressalta. "Ela tem uma marca no focinho e a bunda bem grande", completa aos risos.
O carinho nas palavras ao descrever Frost continua ao revelar que ela tem dois filhotes e já foi flagrada por ele durante uma briga contra um urso polar macho que fez da família um alvo para a refeição do dia.
"Uma vez tava andando de moto com um amigo na garupa e ele me avisou que tinha quatro ursos na minha frente", diz ele ao reviver a história. "Comecei a frear, deslizando, e parei bem pertinho deles. Eles correram, foi quando notei que era ela com seus dois filhos, enquanto se defendiam de um macho".
Além dos ursos, as focas e raposas são outras moradoras da região: "Quando você está no meio do nada, no gelo, só vê esses animais andando pelo território".
Estilo de vida
Enquanto meu parâmetro de estilo de vida no Ártico se baseava em astronautas de "O Céu da Meia-Noite", Chicco conta que seu cotidiano lá é menos tecnológico e mais próximo à natureza.
Na vídeo-chamada Chicco aparece agasalhado, mas não tanto quanto eu esperava. Logo, pergunto: "como vocês se protegem do frio dentro de casa?".
A explicação feita por ele engloba as paredes feitas com chapas duplas de madeira e espuma entre elas, que causa o isolamento. As janelas, na mesma dinâmica, mas feitas de vidro. "O frio não passa, esquenta muito", pontua.
Ele vai ainda além e explica o sistema que colocam a casa "a vácuo":
"As portas são diferentes, tem uma borracha que veda 'a vácuo'. Quando fecha, dá até para sentir a sensação no ouvido", cita.
Já a alimentação é a base, em sua maioria da caça — a qual ele destaca ser feita pela esposa Mia, que possui licença para caça: "Ela atira e eu limpo", detalha.
No supermercado, até é possível encontrar vegetais, que costumam ser mais caros em consequência da logística para chegar até lá.
"Quando se caça, o animal teve uma vida digna, solta, no habitat cultural. Vira alimento para uma família sem sofrimento. Ele morre em questão de dois segundos. É um estalo", diz. "Aproveita-se tudo: coração, fígado e todo o resto. E o que sobrar vai pros cães".
Chicco argumenta ainda que quando é feita a caça, existe um respeito por aquela carne, ao contrário das "bandejas de supermercados": "Não se desperdiça nada"
Você sabe de onde vem, viu o animal morrendo e a vida que custou para ter aquela carne no seu prato".
Por fim, abordo a solidão de viver em um lugar tão distante e frio — tema dissertado também na produção da Netflix com o personagem de George Clooney. Chicco é categórico. Pontua que "solidão é uma palavra muito pesada" e contribui a companhia à natureza ao redor, que o complementa "felicidade e equilíbrio": "Você se contenta consigo mesmo, não sente solidão".
A esposa Mia, que trabalha atualmente como agente de turismo em Lofoten, não se ausenta do discurso do brasileiro:
"Você fica sozinho quando está viciado no mundo virtual. Se tem uma pessoa para conversar, é o suficiente".
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