Passado e futuro do chocolate no Brasil na visão de veterano da indústria
Experiente, Ernesto Ary Neugebauer não só assistiu às mudanças do segmento chocolate no Brasil, como também participou delas.
Hoje, com 63 anos, não é diferente: desde o último trimestre, ele vê entrar nas prateleiras dos principais supermercados e empórios do país os produtos de sua terceira empreitada no ramo, a Danke.
Com uma fábrica bean-to-bar (do cacau à barra) instalada no Pará, a marca pretende levar chocolates brasileiros de qualidade ao público e ajudar a transformar a realidade da produção de cacau no país.
A palavra Danke carrega as minhas tradições alemãs, mas é sobretudo um agradecimento ao cacau, essa coisa maravilhosa que foi o sustento da família durante os últimos 130 anos".
Chocolate no sangue
Como entrega o sobrenome, a família de Ernesto foi responsável por erguer a primeira fábrica de chocolates em território nacional.
Vindos da cidade de Dresden, meca dos chocolates à época, os irmãos Ernst, Franz e Max procuravam uma melhor oportunidade de vida no Brasil e construíram a Neugebauer em 1891, em Porto Alegre.
"Eles trabalhavam com isso na Alemanha e escolheram o país porque, naquela época, grande parte do cacau e do açúcar usado por lá vinha daqui".
Analista de grãos
Quando Ernesto nasceu, a fábrica já era sessentona e o legado havia passado do seu bisavô para seu avô e pai, que ficou à frente do negócio até 1981.
Ele se lembra de visitar a fábrica aos fins de semana ainda pequeno. "Eu sabia que estávamos chegando porque sentia o cheirinho do cacau sendo torrado. Espalhava-se pela vizinhança, igual acontece com o café".
Mais velho, ele acompanhava o pai na empresa depois da escola. O início da participação efetiva na Neugebauer, porém, aconteceu em 1977, aos 20 anos.
Sua função era selecionar os grãos do cacau. Como a produção de alto nível estava voltada pro mercado internacional desde a construção do porto em Ilhéus, em 1970, sobrava para a empresa o cacau de baixa qualidade.
"No laboratório, eu via a porcentagem de casca, a quantidade de mofo interno e externo, quais amêndoas estavam achatadas, germinadas ou apresentavam tonalidade fora do normal... Como não tínhamos muitas opções, só recusávamos o cacau quando era realmente muito ruim. Vinha de navio e às vezes chegava até molhado".
Segundo Ernesto, a Neugebauer cresceu muito e passou a ampliar a gama de produtos, passando a fabricar também embalagens e leite em pó. "Essa empresa não se atualizou muito. Por isso, a família se desfez dela".
Em 1981, a marca gaúcha foi vendida para o extinto grupo Fenícia, de São Paulo.
38 anos perto e longe do cacau
Sem querer deixar o ramo, Ernesto, seu pai e irmão, montaram, no ano seguinte, a Harald. Graças a um trabalho construído ao longo de décadas, a empresa tornou-se líder no segmento de chocolates industriais e teve entre os clientes grandes marcas como McDonald's e Bauducco.
Diferente da Neugebauer, porém, a Harald não trabalhava com a matéria-prima em si, e sim com uma pasta de cacau. "Comprávamos a massa e a manteiga de cacau prontas. Não me envolvia na cadeia, apesar de sempre gostar de estar na lavoura".
Segundo Ernesto, no mesmo período, outras grandes empresas do Brasil, como a Lacta e a Garoto, também deixaram de processar seu próprio cacau e passaram a comprar a pasta de grandes indústrias.
Elas tinham economia de escala muito grande e era vantajoso, na época, comprar a pasta. Mas isso fez com que se perdesse o controle da origem do cacau".
Enquanto lançamentos e mais lançamentos aconteciam, a sociedade da empresa foi se transformando. "Meus sobrinhos e minha irmã venderam a parte deles primeiro e eu fiquei sócio de um grupo japonês [o Fuji Oil]".
Em 2015, ele vendeu 83% do capital da empresa — cujo valor estimado era de R$ 640 milhões —, e ficou com o cargo de presidente. "Depois, passei dois anos como conselheiro e, em junho, eu decidi me dedicar de vez à fábrica que estava montando no Pará para a Danke".
Vítima do gigantismo
Observador do mercado e fã de chocolate, Ernesto acredita que a qualidade do chocolate diminuiu com o passar dos anos. Após a chamada vassoura-de-bruxa, fungo que assolou plantações e faliu quase 30 000 fazendas na Bahia em 1989, a realidade de muitas lavouras de cacau passou a ser a pobreza.
Em paralelo a isso, o modo de organização da industrialização do chocolate no Brasil não ajudou a valorizar o fruto e o produtor.
Fazendas de café e de azeitona são lindas. Existe até turismo. Mas quando entra você em uma fazenda de cacau, o sentimento é de pena".
Sem dinheiro para investir na produção e ainda sem o incentivo da grande indústria, que paga o mesmo preço independentemente da qualidade da amêndoa, o agricultor se encontra muitas vezes numa situação análoga à escravidão.
Comparando com o café, setor onde há uma movimentação global em relação aos grãos especiais, que promovem não só uma melhor experiência na xícara como também uma relação mais justa com o produtor rural, Ernesto estima que "estamos uns vinte anos atrasado".
"Há inúmeros torrefadores de café e só três de cacau. Ou seja, todos os produtores vendem basicamente para três marcas. O sistema se tornou vítima do seu próprio gigantismo".
Danke com papel social
Além de corroborar em sérias questões sociais, o atual modelo de negócios das grandes fabricantes de chocolate resulta num produto ruim, que precisa ter o sabor mascarado por açúcar.
Per capita, eu duvido que alguém coma mais chocolate do que eu, tanto em quantidade quanto em frequência. Venho acompanhando com muita tristeza essa deterioração".
Quase com idade para se aposentar, Ernesto decidiu virar o jogo e tentar fazer a diferença ao instalar uma fábrica processadora no Pará, entre Medicilândia e Altamira. "Fica no meio da floresta onde há a maior concentração de cacau do Brasil, talvez da América Latina."
Sem intermediadoras, o cacau é levado até o local pelos próprios produtores ou retirado nas fazendas por funcionários da Danke, que trabalham fazendo assistência técnica aos agricultores.
"Visitamos o produtor, vimos quem gosta de cacau (tem gente que realmente não se importa) e cadastramos ele. Fazemos um termo de compromisso em que ele garante que a origem do cacau nunca vai ser de floresta queimada ou desmatada. Além disso, as crianças precisam ter carteira de vacinação em dia e estar na escola. Procuramos dentro da fazenda um local apropriado para secar o cacau e tentamos ir atrás de crédito bancário para eles investirem na plantação. Estamos dentro do produtor agrícola".
Por se tratar de uma iniciativa em larga escala, Ernesto acredita que o impacto social será grande. A projeção é de processar mais de mil toneladas em dois anos.
A estratégia não é ter lojas próprias, e sim entrar com força em supermercados e empórios por todo o Brasil. Ainda haverá um braço dedicado a vender a massa de cacau processada para outros fabricantes.
Por se tratar quase de um projeto pessoal, a marca carrega na identidade visual traços alemães. Por fora da embalagem, há um bonequinho inspirado numa foto de Ernesto jovem, indo para a escola de uniforme com a irmã. O interior do pacote exibe um resumo da história dele com o cacau, que, como vimos por aqui, é longa e ainda está em construção.
Quando comecei a comer cacau brasileiro de qualidade, eu me emocionei".
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