"Fada verde" e mais: uma volta ao mundo pelas bebidas feitas com anis
O anis (Pimpinella anisum) é uma planta que produz flores brancas e um odor único. É uma das ervas mais antigas do catálogo culinário humano. Encantou os romanos e é citada na Bíblia. Os registros mais antigos de seu uso são do Levante, região do Mediterrâneo oriental que corresponde aos atuais Líbano, Israel, Palestina, Jordânia e Síria.
O arak é uma bebida feita com anis que surgiu, ou pelo menos se desenvolveu, no Levante. A expansão árabe na Idade Média, que difundiu muitos conhecimentos pelo sul da Europa e o norte da África, acabou apresentando o arak a outros povos, que, com o tempo, tomaram gosto por essa erva e criaram suas próprias bebidas anisadas.
A mais famosa delas é o absinto, que fascinou e polemizou gerações inteiras nos séculos 19 e 20. Mas existem muitas outras, especialmente nos países mediterrâneos, por causa da influência dos árabes e, depois, dos turcos.
São bebidas semelhantes, mas com histórias particulares, que levam na fórmula o anis ou o anis-estrelado, que é o fruto de outra planta, de origem chinesa, mas cujo sabor é parecido porque tem o mesmo óleo essencial, o anetol.
Este guia é uma introdução às bebidas anisadas. Encante-se com o caloroso e inebriante mundo da "fada verde". Saúde!
Absinto
Destilado da planta Artemisia absinthum com outras ervas, como anis, tem alto teor alcoólico (45 a 75%). Foi criado na Suíça a partir da fórmula de um elixir desenvolvido pelo médico francês Pierre Ordinaire, em 1797. A artemísia é uma planta com propriedades medicinais conhecidas há tempos. O destilador francês Henri Louis Pernod foi o primeiro a comercializar a bebida, que em pouco tempo ganhou popularidade. Em 1805, Pernod adquiriu uma fábrica em Pontalier, na França, que acabou se tornando o polo do absinto graças, especialmente, à sua marca, a Pernod Fils.
Ao longo do século, a bebida ganhou o povo francês. Em Paris, o consumo per capita chegou a 2 litros por ano - número elevado para um trago tão forte. Comparação de balcão de bar: no Brasil, em 2018, o consumo de cachaça, que gira em torno de 40% de álcool, foi de 6,9 litros por pessoa, segundo o Centro Brasileiro de Referência da Cachaça.
A forma de se beber também dava um caráter especial ao absinto. Tradicionalmente, o camarada servia uma dose no copo e, devagarzinho, ia pingando água sobre um cubo de açúcar colocado em uma colherzinha equilibrada na boca do copo.
O absinto também conquistou artistas no século 19. Poetas e pintores enalteciam os efeitos da "fada verde", como a bebida foi apelidada. Manet e Degas pintaram consumidores ébrios em suas telas.
No fim do século, o jogo virou, graças à pressão dos produtores de vinhos e do movimento da temperança, formado por grupos conservadores da sociedade que buscavam eliminar o álcool da face da Terra. Na época, realmente havia muito absinto no mercado sem regulamentação, sem controle de qualidade e muitas vezes tóxico.
A bebida acabou se tornando o bode expiatório ideal para as ligas anti-álcool quando um camponês francês bêbado matou a própria família, em 1905. Pouco importava o fato de que o assassino estava louco de vinho e conhaque, não de absinto. Na Suíça, o absinto foi proibido em 1910. Na França, fabricação e comércio estavam banidos em 1915.
Nos anos 1990, o absinto ensaiou um retorno após a regulamentação de comidas e bebidas na União Europeia. A "fada verde" é permitida em alguns países, com limites variados à taxa de thujone, um composto químico polêmico, que carrega o bônus e o ônus de ser o responsável pelos efeitos alucinógenos do absinto. Bem, era no que se acreditava, pois vários estudos já desmistificaram isso. As pessoas ficavam loucas era de muito álcool mesmo.
Aguardiente Colombiano
Feito com álcool de cana-de-açúcar e anis, tem uma graduação alcoólica relativamente baixa (até 29%). Assim como a cachaça, a aguardente colombiana é produzida em diversos departamentos (estados), e a Antioquia é a Minas Gerais deles. O Aguardiente Antioqueño, vendido em simpáticas garrafinhas, é a marca mais comum. Para beber, misture com suco de alguma fruta ou vire um trago.
A Colômbia tem parte do território no Caribe e produz runs reconhecidos, mas o destilado nacional é essa aguardente anisada dos Andes. Isso seria uma herança dos colonizadores espanhóis, que levaram seu gosto pelo anis à América Latina (ver "ojén").
Aniseta
Versão regional da rakia (ou rakija), destilado comum dos Bálcãs e bebida nacional de um punhado de países, como Albânia, Bósnia-Herzegóvina, Croácia e Sérvia. A aniseta, por sua vez, é a bebida tradicional das ilhas do sul da Croácia e da cenográfica cidade de Dubrovnik. Tem 38% de graduação alcoólica e, como o nome diz, é basicamente rakia com anis.
A rakia é uma bebida destilada feita com diversas frutas, comum nos antigos territórios europeus do Império Otomano (ver "raki"). Se o raki dos turcos levava anis na receita, nos Bálcãs a criatividade prevaleceu. Só na Croácia, por exemplo, há rakia de mel, nozes, cereja, ervas variadas etc. Cada uma com um nome próprio, assim como ocorre com a aniseta.
Arak
Bebida nacional da Síria, Líbano e Jordânia (lembrete: nem todos os países do Oriente Médio proíbem álcool). É um destilado feito de uvas fermentadas, acrescido de anis e novamente destilado.
No Líbano, restaurantes familiares servem o arak local, que é destilado quatro vezes e tem mais de 50% de álcool. Por isso, bebe-se com água, em uma mistura que deve ter pelo menos metade de água ou gelo. Isso dá ao arak a aparência branca leitosa característica de bebidas anisadas. O efeito é causado porque óleos essenciais diluídos no álcool cristalizam-se ao entrar em contato com a água.
Chinchón
Em Chinchón, cidade nos arredores de Madri, o anis é macerado no vinho e destilado até atingir 43% de álcool. Há a versão seca e a doce, e a produção é controlada e reconhecida pelo governo: o anís de chinchón, produzido em massa desde 1912, leva apenas anis de Sevilha.
Ojén
Destilado feito com o vinho produzido na região de Ojén, povoado de Málaga, na Andaluzia. Doce, anisada e com graduação alcoólica de até 40%, a bebida foi criada em 1830. Mas atravessou alguns longos períodos sem ser fabricada. O último deles foi entre 1974 e 2013.
Em meados do século 20, por um motivo desconhecido qualquer, a aguardente de Ojén virou a bebida não-oficial do Carnaval de Nova Orleans, quando era entornada com gelo, água com gás e bitter.
O sumiço do destilado espanhol fomentou sua mística nos Estados Unidos. Mas a popularidade de bebidas anisadas na Espanha acabou influenciando o desenvolvimento de outras versões na Colômbia (ver "aguardiente colombiano"), muito além do Mardi Gras da Louisiana.
Ouzo
O mais famoso destilado grego só foi regulamentado pelo governo local em 2006, quando ganhou, também, indicação geográfica reconhecida pela União Europeia.
Ouzo é a bebida feita da destilação de cascas de uvas com ervas aromáticas, como alcaçuz, anis, cravo e canela, além de mástique, que é a resina do lentisco, um arbusto mediterrâneo bastante perfumado. As uvas devem ser provenientes da ilha de Lesbos, onde o ouzo surgiu e onde estão as destilarias mais tradicionais.
Tem mais de 40% de graduação alcoólica e, portanto, é servido com gelo. Assim como o arak e o raki, acompanha petiscos (meze).
Pastis
Em 1932, o absinto era proibido na França e em um monte de outros lugares. Então, o marselhês Paul Ricard inventou uma bebida destilada feita de anis-estrelado, alcaçuz e outras ervas da Provença. Batizou-a de Pastis, que no dialeto provençal significa "mistura". Tem até 45% de álcool, então é comum bebê-lo diluído em água (em geral cinco partes para uma).
A partir de Marselha, o pastis conquistou milhões de bebedores na França e logo foi seguido por outras marcas, em especial a Pernod Anise. Herdeiras do absinto, as rivais Pernot e Ricard fundiram-se em 1975, formando o segundo maior conglomerado de destilados e vinhos do mundo.
Raki
A bebida nacional turca nasceu da influência direta do arak dos árabes. No século 17, um viajante otomano usou o apelido pelo qual ela é conhecida até hoje: "leite de leão". Até o século 19, raki era apenas o nome pelo qual o arak era conhecido nos domínios do Império Turco-Otomano (por isso o arak também pode ser chamado de "leite de leão").
A partir de então, pequenas diferenças começaram a surgir. Hoje, raki é a bebida destilada anisada feita à base de bagaço de uva ou de uva-passa (há versões de figo ou de ameixa também). Tem alta graduação alcoólica (cerca de 45%), é servida diluída em água ou com pedras de gelo e também acompanha os mezes, a comida de boteco típica da Turquia (e também na Grécia).
Até 2003, a produção do raki era monopólio estatal. Depois, surgiram marcas refinadas e populares, mas, nos últimos anos, com a guinada repressiva do governo Erdogan e a perseguição cultural ao álcool, incrementada pela alta taxação das bebidas, a situação não ficou das melhores. O mercado de birita clandestina, perigosa e mortal, anda bastante inflado na Turquia.
Sambuca
É o digestivo anisado italiano por excelência, por mais que existam outros. Bastante doce, é feito de anis-estrelado, extrato de endro e flor de sabugueiro e tem 38% ABV.
Surgiu no século 19 nos arredores de Roma, mas ficou popular somente depois da Segunda Guerra. Costuma ser servida após o café, misturada com ele ou então com grãozinhos ("con la mosca"). Tal qual os outros irmãos de anis do Mediterrâneo, água e seu efeito leitoso também são bem-vindos.
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