Arqueólogos e cervejarias se unem para recriar bebidas milenares
Em 1957, arqueólogos da Universidade da Pensilvânia (EUA) escavaram o que se acreditava ser a tumba do rei Midas, soberano da Frígia, reino que teve seu auge no século 8 a.C. e que ficava no centro da atual Turquia. O Midas da mitologia grega, aquele que transforma tudo o que toca em ouro, é inspirado nesse rei.
Maravilhados, os escavadores encontraram o corpo de um homem na casa dos 60-65 anos, que morreu de causas naturais. Tecidos tingidos de azul e roxo, cores da realeza no antigo Oriente Próximo, acompanhavam o sujeito, que levou para a outra vida a maior coleção de copos e taças da Idade do Ferro já encontrada: 157 vasos de bronze, incluindo tigelas, jarros e grandes tonéis.
Ainda não se sabe se o homem encontrado era Midas da Frígia, mas esse rei foi enterrado com um belíssimo estoque para a outra vida, um farnelzinho que durou 2,7 mil anos.
O que sobrou, quando a tumba foi escavada, não é bebida nem comida, é evidente, mas amostras químicas que indicam o que havia nos recipientes. Cerca de 40 anos depois do achado arqueológico, Patrick McGovern, um químico e arqueólogo que trabalha na mesma universidade, reanalisou os resíduos dos copos e concluiu que se tratava de uma bebida feita de mel, uvas, talvez açafrão e, principalmente, cevada.
Ovo ou galinha?
A descoberta foi um marco na carreira acadêmica de McGovern e no advento da arqueologia molecular, ramo em que ele é pioneiro. Desde então, o cientista tem se dedicado a essas bebidas da Antiguidade (ou até da Pré-História). Não é uma linha de pesquisa fanfarrona. Para ele, o álcool ajuda a explicar muito sobre como as culturas se desenvolveram.
Mas como fazer isso sendo que nem existe mais álcool nessas taças milenares? De fato, em exposição, o álcool não dura mais do que alguns meses, ele evapora ou vira vinagre. Mas deixa compostos químicos, que funcionam como impressões digitais para esses cientistas. Por exemplo, para concluírem que tal bebida tinha mel, eles encontraram resquícios de hidrocarbonetos de cera de abelha. Já a cevada fermentada deixa oxalato de cálcio, um subproduto esbranquiçado e amargo.
McGovern é um dos principais defensores de uma hipótese que ficou mais encorpada nas últimas décadas, sobre o que motivou a Revolução Agrícola, ou Revolução Neolítica, em que, 12,5 mil anos atrás, os humanos começaram a domesticar plantas e animais e trocaram o modo de vida caçador-coletor e nômade pelo agrícola e sedentário, o propiciou o surgimento das civilizações. Para estudiosos, não foi a criação do pão que iniciou isso tudo. Mas a da cerveja.
Segundo essa teoria, homens e mulheres domaram milho e trigo, por exemplo, para bebê-los, e só depois para comê-los. A razão estaria nos efeitos causados. A cerveja alimentava e dava barato, diferentemente do pão. Além disso, o torpor provocado por essas bebidas ancestrais teria ajudado bastante no desenvolvimento de religiões e culturas. Perguntar não ofende: o que estimula mais a criar pinturas rupestres, danças ritualísticas ou medicina xamânica: pão ou cerveja?
Para resumir em um gole: a cerveja nos tornou humanos.
"No começo dos anos 1950, [o arqueólogo americano] Robert Braidwood perguntou a uma série de estudiosos se era possível o ser humano ter sobrevivido no passado com uma dieta baseada em cerveja e se a cerveja estaria por trás da domesticação dos alimentos", escreve o antropólogo Fernando Ozorio de Almeida no artigo "A Arqueologia dos Fermentados: a Etílica História dos Tupi-Guarani", publicado na revista Estudos Avançados, da USP.
A resposta, quase unânime, foi 'não'. Atualmente, essa perspectiva começa a mudar."
Ozorio de Almeida explica: todos os grãos ou tubérculos mais produzidos no mundo, como cevada, trigo, arroz, milho, mandioca, batata-doce, sorgo e batata, têm versões alcoólicas, o que "deve ter influenciado os especialistas a reverem seus conceitos. Assim como a constatação de que a versão líquida desses alimentos em geral é mais nutritiva do que a versão sólida (possui mais vitamina B)."
Resgate de antigas receitas
Mais ou menos na mesma época em que McGovern desvendava a cerveja de Midas na Pensilvânia, uma arqueóloga da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, se debruçava no microscópio para entender os métodos cervejeiros dos antigos egípcios. Em 1996, Delwen Samuel, em parceria com o egiptólogo Barry Kemp, também de Cambridge, escavou uma cervejaria que pertencia à rainha Nefertiti, que viveu no século 14 a.C.
De volta ao laboratório, Samuel confirmou que, no Egito, os mestres cervejeiros já usavam grãos germinados (de cevada ou de trigo) em suas receitas. Ou seja, malte.
Esses feitos da chamada arqueobotânica chamaram a atenção da indústria. A Scottish & Newcastle, cervejaria britânica que existiu até 2008, quando foi comprada e dividida entre Heineken e Carlsberg, patrocinou o trabalho de Samuel. Os achados da arqueóloga serviram de base para a criação da Tutankhamun Ale, que teve produção de 1.000 garrafas, quase todas vendidas no mesmo ano na loja de luxo Harrods, em Londres. Hoje, é possível encontrar a receita em sites voltados a cervejeiros caseiros.
Três anos depois, McGovern iniciou uma prolífica parceria com a cervejaria americana Dogfish Head. A primeira foi a Midas Touch. Como as análises das escavações na Turquia não deixavam claro se os copos dos frígios serviam para cerveja, vinho, hidromel ou tudo junto e misturado, a receita da Dogfish Head é doce e seca, o que promete agradar cervejeiros e fãs de chardonnay.
A inovação deu certo. Entre os 357 rótulos da cervejaria de Delaware listados no site Ratebeer.com, a Midas Touch, com 9% de teor alcoólico, é a sexta mais bem avaliada. Além disso, tornou-se a cerveja mais premiada da casa.
Com o sucesso, a Dogfish Head investiu em novas receitas ousadas, que têm a pretensão de recriar, ou reinterpretar, antigas fórmulas. Dr. Pat, como é conhecido por lá, participou de um punhado delas. A Theobroma é baseada em análises químicas de cerâmicas encontradas em Honduras que indicam que os humanos consomem cacau há mais de 3,2 mil anos. A Chicha, assim como a chicha original andina, leva milho roxo peruano mastigado e cuspido (e depois esterilizado, eles endossam).
Chateau Jiahu tem mel de flor de laranjeira, suco de uva moscatel, malte de cevada, frutas de espinheiro e leveduras de saquê. A receita é baseada nas descobertas de uma viagem de McGovern à China, em 2003, em que ele encontrou a mais antiga evidência de consumo de álcool da humanidade, uma mistura de uvas selvagens, espinheiro, arroz e mel com 9 mil anos de idade.
Por fim, a Ta Henket é, assim como a Tutankhamun Ale, um retorno ao Egito. McGovern e Sam Calagione, fundador da cervejaria, escolheram especiarias no Khan el-Khalili, o maior e mais antigo mercado do Cairo, baseados, de novo, em pesquisas científicas. A tumba do faraó Escorpião 1º (cerca de 3150 a.C.) revelou sinais de tomilho e coentro. Já no sítio arqueológico Wadi Kubbaniya, 13 mil anos mais antigo, McGovern analisou pedras polvilhadas de amido, provavelmente usadas para sorgo ou junco. As pedras estavam junto de restos de frutos de palmeiras e de camomila.
Os frutos e a camomila estão na receita da Ta Henket, além de za'atar, mistura moída que leva, entre outros ingredientes, tomilho e coentro. Uma cepa de levedura egípcia foi capturada para a fermentação.
No Egito, cada trabalhador recebia uma ração diária de até 5 litros de cerveja por dia durante a construção das pirâmides. Uma nova versão dessa mistura de nutrição, alívio e premiação, graças aos experimentos de McGovern e Calagione, pode ser saboreada hoje.
Mas não só eles. Outros arqueólogos e mestres cervejeiros têm unido forças. Donna Nash, chefe do departamento de Antropologia da Universidade da Carolina do Norte, e o arqueólogo Patrick Ryan Philips, curador do Museu Field de História Natural e especialista nos primeiros Estados da América do Sul, fizeram uma parceria com a Off Colour, de Chicago (onde fica o Field).
O resultado é a Wari, cerveja inspirada na chicha dos huari, povo que habitava o Peru e era conhecido por sua diplomacia.
A parceria entre cervejeiros e cientistas também aparece fora dos Estados Unidos. A arqueóloga canadense Marie Hopwood, da Universidade da Ilha de Vancouver, juntou-se à Love Shack Libations, uma nanocervejaria local, para dar à luz quatro cervejas. Uma delas é a Odin's Eye, feita com maltes bastante torrados e aromatizada com casca de bétula, mirtilo, cerejas e plantas nórdicas.
Já o arqueólogo Aren Maeir, professor na Universidade Bar-Ilan, em Israel, descobriu, no sítio de Tell es-Safi, um jarro filisteu que servia para tomar cerveja. Os pesquisadores concluíram isso porque o jarro contém pequenos orifícios entre o compartimento principal e o bico que serviriam de filtro para os pedaços de grãos que sobravam da fermentação.
Um time de biólogos, arqueólogos e um mestre-cervejeiro se juntaram a Maeir para isolar as leveduras encontradas com os jarros de Tell es-Safi e de outros sítios arqueológicos de Israel. Com os microrganismos, eles criaram diferentes cervejas para se aproximar de como se bebia há 5 mil anos.
Sim, se aproximar, porque não dá para recriar exatamente as receitas. No livro "Ancient Brews: Rediscovered and Re-created", McGovern dá a letra: "podemos saber os ingredientes essenciais, mas que porcentagem de cada um foi usada?", escreve.
"Já que todo o álcool evaporou e desapareceu dos resíduos antigos, como sabemos qual era o teor de álcool? Que leveduras e bactérias associadas devemos usar para fazer a fermentação? Se temos uma mistura complexa de ingredientes, fermentamos todos juntos ou fazemos fermentações separadas e os misturamos no final do processo? Quando adicionamos os ingredientes amargos e à base de ervas: perto do início, para integrá-los totalmente à bebida, ou perto do fim, para preservar mais suas características únicas?" São muitas lacunas.
Por isso, o arqueólogo biomolecular explica que o jeito é unir pistas e cenários diferentes e testar e testar até atingir algo agradável. Isso "parte do pressuposto de que os humanos, em todo o mundo, provavelmente remontando a milhões de anos, aos tempos do Paleolítico, tinham uma constituição genética, fisiológica e psicológica semelhante à nossa.
Em suma, como nós, nossos ancestrais sabiam o que cheirava e tinha gosto bom e o que os animava".
Qual a origem da cerveja?
A ciência sabe que bebemos cerveja há alguns milhares de anos. Desde quando exatamente, varia de acordo com a evolução das descobertas arqueológicas. Em 2018, um time da Universidade Stanford, dos EUA, liderado pela arqueóloga Li Liu, identificou grãos fermentados em pilões de pedra encontrados em uma caverna no litoral norte de Israel. Os utensílios têm 13 mil anos, o que evidencia que a cerveja é ainda mais antiga do que os 9 mil anos cravados pela descoberta de McGovern na China.
O local em Israel era um cemitério de natufianos, grupos de caçadores-coletores que viviam na região do Levante, no Mediterrâneo Oriental, entre 15 mil e 11 mil anos atrás. Eles bebiam cerveja para honrar os mortos, concluíram os cientistas.
Se a cerveja é tão velha assim, isso significa que ela veio mesmo antes do pão? Não necessariamente. "Provavelmente nunca saberemos isso", disse Li ao site americano "Sapiens".
A união da arqueologia com a cerveja é uma improvável parceria que busca em profundidades cada vez mais distantes desse passado respostas para a origem de diversos aspectos da cultura humana. No meio do processo, eles tratam de recriar o que os nossos ancestrais bebiam. Um delírio para nerds cervejeiros.
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