Topo

Leite cru é sinal de queijo ruim? Vídeo reacende polêmica com produtores

Queijo nacional semi curado: Serra da Canastra - Rodrigo Moreira/Getty Images/iStockphoto
Queijo nacional semi curado: Serra da Canastra Imagem: Rodrigo Moreira/Getty Images/iStockphoto

Gabrielli Menezes

De Nossa

19/02/2021 04h00

Um vídeo publicado nas redes sociais de instituições públicas movimentou produtores, comerciantes e chefs entusiastas de queijos artesanais.

O conteúdo, compartilhado pela Embrapa, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), pela Epamig e pelo Instituto Cândido Tostes, consiste num tutorial de pasteurização do leite. "A pasteurização lenta é uma técnica de tratamento térmico do leite que destrói os microrganismos que fazem mal à saúde, evitando a disseminação de doenças transmitidas pelo leite cru", diz a Embrapa na legenda do vídeo no Instagram.

A Comer Queijo, associação de comerciantes de queijos artesanais brasileiros, enviou uma nota de repúdio à Embrapa pela divulgação do material que relaciona diretamente os queijos de leite cru a doenças.

O queijo de coalho e o Serra da Canastra são exemplo de produtos regionais feitos sem o processo de pasteurização, ou seja, com leite cru.

É inadmissível estabelecer a pasteurização como justificativa para a obtenção de leite de animais doentes.

Contraria a própria legislação brasileira, que determina que o leite deve ser oriundo de animais sadios", diz o e-mail da Comer Queijo à empresa pública de pesquisa, que retornou ao primeiro comunicado com uma série de trabalhos acadêmicos.

Queijo de coalho artesanal, tradicional da região Nordeste: feito com leite cru - Ricardo Alves/Getty Images/iStockphoto - Ricardo Alves/Getty Images/iStockphoto
Queijo de coalho artesanal, tradicional da região Nordeste: feito com leite cru
Imagem: Ricardo Alves/Getty Images/iStockphoto

"A presença de patógenos em queijos, como consta em alguns dos artigos de queijos de leite cru enviados, é possível de se encontrar também em queijos de leite pasteurizado, onde não houve aplicação de boas práticas de fabricação, a qual defendemos", reforça a associação de comerciantes.

Procurada por Nossa, a Embrapa afirma via assessoria de imprensa que o vídeo não afirma que a pasteurização é a única forma de garantir a qualidade sanitária. Após as contestações, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), a Embrapa, a Epamig e o Instituto de Laticínios Cândido Tostes publicaram uma nota de esclarecimento:

"Os Queijos Artesanais são patrimônio imaterial brasileiro e um dos orgulhos da produção agroalimentar nacional. O país vem trabalhando para viabilizar a produção e a regularização dos estabelecimentos agroindustriais de pequeno porte, incluindo os artesanais. Entretanto, o Brasil ainda apresenta uma série de desafios, principalmente do ponto de vista sanitário, que ainda precisam ser superados.

Avançamos muito do ponto de vista legal, principalmente após a publicação das Leis nº 13.680/2018 e 13.860/2019, incluindo o entendimento do que é um queijo artesanal e dos requisitos necessários para produzir de forma adequada. Nesse sentido, o queijo artesanal precisa, entre outros requisitos, ter como matéria prima um leite de boa qualidade e, quando feito de leite cru, vir de rebanho certificado como livre de tuberculose e brucelose, duas zoonoses ainda prevalentes no rebanho brasileiro. (...)

Pensando nisso, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - Mapa, em parceria com a Embrapa, a Epamig e o Instituto de Laticínios Cândido Tostes, produziu este vídeo para a divulgação da pasteurização lenta, que é uma técnica barata e que pode ser utilizada na agroindústria de pequeno porte em todas as regiões do país".

Assista ao vídeo:

Pasteurizar: uma escolha do produtor

O empreendedor queijeiro Bruno Cabral, presidente da Comer Queijo, explica que pasteurizar o leite deve ser uma ferramenta optativa e não obrigatória.

"O que deveria ser obrigatório é que o rebanho seja vacinado e livre de zoonoses, como tuberculose e brucelose. O produtor também deve seguir boas práticas de fabricação e higiene, mas dizer que a pasteurização salva toda a produção de um leite doente e de baixa qualidade é mentira".

Michelle Carvalho, doutoranda em ciência de alimentos, diz que o ideal seria respeitar os diferentes modos de se fazer queijo e que o governo não criasse tantas barreiras para os produtores.

Para se legalizarem, os produtores acabam cedendo e pasteurizando o leite. Se não, eles continuam clandestinos, restritos aos consumidores locais, com vendas informais de porta em porta.".

Atualmente, a legislação é estadual e a rigidez das normas depende de questões culturais de cada região.

Um dos empreendedores regulamentados pelo Serviço de Inspeção Municipal (SIM) é Oswaldo Filho. Ele criou a marca Queijo D'Alagoa-MG, cujo nome é uma homenagem à cidade Alagoa, onde está localizado. Trata-se de um pequeno município no estado de Minas Gerais que tem cerca de 2 800 habitantes.

Queijo d'Alagoa: premiado no Brasil e na França - Divulgação @queijodalagoamg - Divulgação @queijodalagoamg
Queijo d'Alagoa: premiado no Brasil e na França
Imagem: Divulgação @queijodalagoamg

"Temos dez famílias de pequenos produtores parceiros que dependem de nosso trabalho. O nosso contato com a agência dos Correios é o que mantém ela aberta na cidade", diz Oswaldo, que faz a maturação e a comercialização, sendo o pioneiro na venda queijos pela internet.

Ele explica que os queijos de leite cru têm história e tradição e precisam ser valorizados. "Há espaço para os dois".

O processo que consiste em aquecer o leite mata as bactérias e estabiliza o líquido, tornando-o padronizado. "A riqueza do leite cru é justamente estar cheio de bactérias boas. Pode ser que tenha alguma ruim, mas na nossa receita a massa é cozida a 47 graus e fazemos exames de laboratório constantemente justamente para assegurar o consumidor", explica.

Segundo ele, quem faz queijo artesanal de qualidade a partir de leite cru precisa começar a pensar a produção "lá atrás", atentando-se para a saúde do animal.

Com leite ruim não se faz queijo bom".

Queijos apreendidos e selo para artesanais

A chef Roberta Sudbrack, que teve seus alimentos descartados pela Vigilância Sanitária no Rock in Rio - Reprodução/Facebook/Roberta Sudbrack - Reprodução/Facebook/Roberta Sudbrack
A chef Roberta Sudbrack, que teve seus alimentos descartados pela Vigilância Sanitária no Rock in Rio
Imagem: Reprodução/Facebook/Roberta Sudbrack

Apesar de ainda enfrentarem dificuldades de legislação e fiscalização, os produtores de queijos conquistaram um importante direito em 2018, quando foi instituído o Selo Arte. Trata-se de uma forma de facilitar a regularização dos produtos alimentícios artesanais de origem animal para que estes sejam comercializados em território nacional.

Antes da lei, o processo de todos os produtos alimentícios de origem animal tinha a sua circulação restrita ao sistema de inspeção ao qual era submetido. O produto registrado no sistema de inspeção municipal (SIM) poderia ser comercializado apenas naquele município. A mesma situação ocorria nos estados (SIE).

Uma das chefs mais ativas que buscava a sanção da lei é Roberta Sudbrack que, durante o Rock in Rio em 2015, viu 160 quilos de alimentos do seu estande serem apreendidos pela vigilância sanitária. Segundo a chef, tudo foi jogado no lixo.

"Recentemente encabecei uma luta para a mudança de uma lei arcaica de 1950 sobre a circulação de produtos artesanais pelo território brasileiro. Os pequenos estão nesta luta há tanto tempo, que se alguém tivesse que ter morrido por ter ingerido um queijo produzido com leite cru, provavelmente não haveria sobreviventes para manter a tradição e a história desses queijos viva", diz a cozinheira em entrevista a Nossa.

"As regras sanitárias existem para proteger a população, são necessárias e importantes. Mas precisam levar em conta o esforço desses artesãos não apenas para se enquadrar nas regras que já existem - o que normalmente acontece - mas também para manter viva a tradição culinária de um país. Não há relação comprovada com as doenças que a campanha insinua e o consumo de queijos produzidos com leite cru, quando tanto o leite, quanto os processos utilizados pelos produtores, se utilizam de todos os cuidados determinados pelas exigências sanitárias em vigor".

É uma campanha criminosa, enganosa e extremamente preconceituosa, porque parte do princípio de que irá marcar a sua posição contando com a ignorância do pequeno produtor".