Ex-funcionários de navios de cruzeiro relatam rotina exaustiva e até surto
Horas intermináveis, estresse, saúde mental comprometida e "venda" de uma profissão perfeita que não existe. É como dois ex-funcionários definem o trabalho dentro de navios de cruzeiro.
Com um treinamento duro antes mesmo de embarcar, ambos contaram a Nossa como era a rotina durante os meses em que atuaram na área. E ainda foram enfáticos: não recomendam para ninguém.
Trabalho à base de injeção
Marcelo Guimarães, 39 anos, conta que para ser aceito para o trabalho em uma frota italiana cinco estrelas, passou por teste, entrevista online e fez um curso em Curitiba por dez dias. Lá, o candidato faz uma prova escrita, física e recebe todas as instruções.
"O contrato era de nove meses, mas eu não aguentei e desisti em cinco", lembra da experiência em 2016.
Existe uma lenda que a pessoa pode viajar de graça, mas é o tempo de tirar uma selfie no ponto turístico e pronto. Geralmente, você tem quatro horas livres e nesse período você quer descansar e dormir, pelo menos para a maioria dos funcionários que eu convivia", relembra.
Sua função era a de cabin steward, responsável pela limpeza e coordenação de 26 cabines. "O serviço era muito puxado e a nossa jornada de trabalho chegava a ser de 15 horas por dia. No início, eles combinavam 12 horas, mas era impossível fazer só essa quantidade, já que normalmente eu começava a trabalhar às oito da manhã, mas tinha treinamento às seis", conta.
Em pouco tempo, passou por outras funções como inventário e recepção.
Eu e os outros funcionários aguentávamos na base de injeção. Era muita dor nas costas, pernas a cada dia que eu levantava para trabalhar. Eu corria para o ambulatório, tomava o remédio e voltava aos meus afazeres", relata.
Segundo Marcelo, toda a rotina acabava com a saúde física e mental, logo era bem difícil dormir e relaxar. O que o mantinha neste cenário era o salário de US$ 1200 e com comissões chegavam a US$ 2 mil — o que na conversão de hoje representaria cerca de R$ 6,6 mil e R$ 11,1 mil, respectivamente.
Era tão corrido e estressante que uma vez uma funcionária teve um surto durante o cruzeiro, conta Marcelo. "Ela saiu pelada correndo, gritando e chorando. Eu olhei aquilo e pensei 'acho que posso ser o próximo.' Foi aí que eu decidi, pedi para sair e desisti de trabalhar com isso", diz.
"Lembro que no treinamento, me falaram que 85% de quem desiste são homens e eu achei que não era verdade. Mas pude ver com os meus próprios olhos e também cheguei à conclusão que aquilo não era para mim."
Surto e doença
Para Verônica Ferrari, 32 anos, a experiência não foi menos traumática. No desejo de conhecer o mundo, ela entrou em um navio seis estrelas em 2010.
Como Marcelo, também não seguiu no contrato de nove meses, e ficou somente seis na companhia, como assistente de garçom.
"Trabalhava cerca de 12 horas por dia e, às vezes, até mais", diz. Ela conta que, em alguns lugares, começava a trabalhar por volta das três da manhã, com um intervalo de 15 minutos, e chegava a trabalhar sete dias sem pausa. Nos dias de folga, apesar da vontade, era impossível aproveitar os lugares.
"Eu ficava muito em pé e sentia muitas dores nas costas. Para aguentar o ritmo, quase todos os funcionários tomavam ginseng com energético."
Outro problema era o tratamento dado à tripulação, como comida velha e abusos dentro da hierarquia a bordo. Tudo isso criava um ambiente extremamente tóxico.
"Algumas amigas minhas tiveram problemas graves. Uma sul-africana não conseguia fechar a mão para segurar objetos e tinha muito formigamento no braço. Eu chegava a vomitar por causa da ansiedade e as crises eram recorrentes", relembra.
Decidi que eu deveria sair do navio, antes que ficasse ainda mais doente".
Toda vez que alguém chega em mim e pergunta se deve fazer esse tipo de serviço, eu sempre falo que se deseja ter uma experiência e viajar, o melhor é fazer um mochilão ou intercâmbio.
Para um amigo, eu nunca indico."
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