Em 2020, o Hakushu, do conglomerado de bebidas Suntory, foi eleito o melhor uísque single malt do mundo no World Whiskies Awards — o Oscar do destilado. Na categoria de melhor lançamento limitado de uísque blended, deu Japão de novo, com o Ichiro's Malt & Grain. Não foi uma zebra. Desde 2015, o Japão leva pelo menos um prêmio de melhor uísque do mundo.
O mundo mudou bastante desde que Bill Murray repetia em frente à câmera "Suntory time!" em "Encontros e Desencontros". Em 2003, quando o filme de Sofia Coppola foi lançado, uísques japoneses eram uma excentricidade no Ocidente.
Fazia sentido, no começo do século, um filme sobre um ator decadente de Hollywood que é contratado para viajar a Tóquio e fazer um vídeo publicitário para um uísque local. Hoje, não tanto.
Produtores japoneses estão cada vez mais presentes em feiras de bebidas. Os prêmios e os elogios da crítica especializada se acumulam. E a Suntory é dona de uma das gigantes americanas, a Jim Beam (e de todo o seu portfólio, que inclui Maker's Mark, Canadian Club e outros destilados famosos).
O Japão pode não ter uma tradição centenária nesse mercado, mas sua ascensão não se deu por acaso.
Primeiros goles
Na década de 1870 já se fazia uísque no arquipélago. Eram os primeiros anos da Era Meiji, em que o imperador Mutsuhito reassumiu o império, aboliu o feudalismo, baniu os samurais e abriu os portos ao comércio exterior. Isolada em suas ilhas durante séculos, a sociedade japonesa começou a conhecer o resto do mundo, ao mesmo tempo em que iniciava um sólido projeto de desenvolvimento.
Na virada para o século 20, os uísques escoceses já tinham seus admiradores no Japão. Na verdade, outras bebidas ganharam espaço, e a história de uma loja de Osaka mostra isso. A Torii Shoten começou a vender vinhos importados em 1899. Em 1907, investiu em um vinho do Porto japonês que permitiu a seu fundador, Shinjiro Torii, expandir os negócios.
Àquela época, Settsu Shuzo, dono de uma fábrica de bebidas, acreditava que investir na produção local de uísque podia ser uma boa. Mas, antes, era preciso aprender a fazer, então, em 1918, ele enviou Masataka Taketsuru, herdeiro de uma tradicional família produtora de saquê, à Escócia para estagiar em algumas destilarias.
Masataka voltou ao Japão em 1920 com o que seria o primeiro guia de produção de uísque no país.
Naquele ano, porém, o mundo ainda sofria os baques da Primeira Guerra. Settsu desistiu dos planos de investir em produção de uísque. Mas lá estava Shinjiro Torii, que acreditou no potencial de Masataka. A loja de Torii já havia virado uma fabricante de bebidas, mas a imitação de uísque que ele fazia não agradava muito.
A dupla estudou as anotações de Masataka e em 1924 iniciou a produção na destilaria Yamazaki, nos arredores de Kyoto. Em 1929, saiu o primeiro single malt japonês, o Shirofuda (ou "White Label"). A recepção, no entanto, foi morna, pois o uísque era defumado demais para o público japonês.
Após dez anos de parceria, surgiu a rivalidade. Em 1934, Masataka fundou a própria destilaria, a Yoichi, na cidade de mesmo nome em Hokkaido. Lá surgiu a Nikka, uma das grandes marcas de uísque japonês.
A empresa de Torii, Kotobukiya, conquistou o público em 1937 com o Kakubin, muito mais suave que o White Label. A fabricante seguiu crescendo, e em 1963 mudou seu nome para Suntory.
Influência escocesa
As proximidades de Yoichi têm pântanos com muitas fontes de turfa, muito usada na produção de uísque escocês: musgos mortos que criam os elementos defumados da bebida, uma característica que Masataka fez questão de implementar nos uísques japoneses a partir da primeira obra da Yoichi, o Nikka Whisky Rare Old, lançado em 1940.
Devido ao pioneirismo de Masataka, a influência escocesa no uísque japonês é enorme. A geografia colaborou. A qualidade da água e as quatro estações bem definidas ajudam a enaltecer as propriedades da bebida.
Mas isso não quer dizer que os destiladores japoneses apenas emulam o que os escoceses faziam.
Na Escócia, um uísque blended ("misturado") é resultado da mistura de líquidos de barris e destilarias diferentes. Já o single malt é obtido em apenas uma destilaria, mas, ainda assim, misturado em alambiques e barris até se chegar ao resultado desejado. Ou seja, é um tipo diferente de produção, mais cara, mas que não necessariamente significa um uísque melhor. Tal qual o "puro malte" das cervejas: o marketing às vezes embebeda os fatos.
Já no Japão, a prática é mais complicada porque o país tem muito menos destilarias disponíveis e os grandes nomes do mercado, como vimos, não se bicam.
"Para gerar riqueza sensorial, as destilarias devem ser gigantescas e produzir o maior número possível de bebidas com perfis sensoriais distintos para conseguir compor os blends", diz Maurício Porto, do blog "O Cão Engarrafado", que cobre o mundo do uísque.
A destilaria Hakushu, da Suntory, responsável pelos uísques defumados e turfados, é maior até do que a vila de Hakushu, onde ela fica."
Na Escócia, é comum uma marca usar alambiques e colunas de mesmo tamanho e formato. Cada uma tem o seu modelo próprio, porque o formato e o tamanho influenciam na destilação e, consequentemente, no produto final, como explica o blog especializado Distiller.
Grosso modo e exceções à parte, um aparelho mais comprido tende a ser usado para uísques mais leves, e um mais curto, para os encorpados. No Japão, isso varia dentro da própria destilaria. A Chita, também da Suntory, usa quatro colunas de destilação.
A madeira dos barris é outro fator. O carvalho branco (ou americano) é quase onipresente nos uísques americanos, por exemplo. Mas, no Japão, a variedade é maior. Lá se tem à mão barris de carvalho europeu, usados anteriormente em xerez, e mizunara, que são duas espécies de carvalho da Ásia, o mongol e o japonês.
"O carvalho japonês traz um sabor que se aproxima mais do americano do que do europeu, porém bem mais intenso e carregado em vanilina, que traz aroma de baunilha, bem como especiarias, como pimenta-do-reino", diz Porto.
Os resultados são bebidas bastante variadas, complexas e equilibradas — e uma escola japonesa de uísque.
A conquista do Oeste
Masataka abriu uma segunda destilaria em 1969, a Miyagikyo, próxima a Sendai, no norte da ilha de Honshu. Ele escolheu o lugar porque lembrava as Terras Altas da Escócia. Ali, estabeleceu-se uma tradição da empresa. Os uísques da Nikka levam o nome das destilarias onde nasceram, Yoichi ou Miyagikyo.
Pelas décadas seguintes, os bebedores desses uísques se concentravam na Ásia e, às vezes, na Europa. No Japão, o destilado se popularizou graças ao highball.
Em 2001, o Yamazaki Single Malt, da Suntory, chegou aos Estados Unidos. Dois anos depois, Bob Harris, o personagem de Bill Murray, bebia um Hibiki 17 anos e abria as portas para todo um vasto e novo público.
Coincidentemente, naquele mesmo 2003 o Yamazaki 12 anos ganhou seu primeiro prêmio, ouro no International Spirits Challenge. Mais e mais pessoas no Ocidente passaram a conhecer os uísques japoneses. Em 2015, estrangeiros já eram 10% dos turistas da Yamazaki.
Em 2008, um Yoichi envelhecido por 20 anos rendeu à Nikka o título de melhor single malt do mundo. Em 2014, o renomado crítico inglês Jim Murray elegeu o Yamazaki Sherry Cask de 2013 o melhor uísque do globo.
Os japoneses provaram que era possível fazer algo incrível usando como base as técnicas escocesas, mesmo longe da Escócia. Algo até então inédito, mas que se espalhou: mais tarde, Austrália, com o Lark, e Taiwan, com o Kavalan, ampliaram o mapa-múndi dos uísques premiados.
O futuro
Em 1º de abril deste ano, uma nova legislação sobre o uísque japonês entrou em vigor.
Era permitido — ou melhor, não era ilegal — que um uísque destilado e maturado em outro país e engarrafado no Japão fosse rotulado como japonês", exemplifica Porto.
No começo isso fazia sentido, porque o país tinha poucas destilarias. Mas, depois, com a demanda explodindo, surgiram os oportunistas que compravam uísque barato e engarrafavam no Japão só para ter a grife e vender caro.
De acordo com as novas regras, a água usada deve ser extraída no Japão e a matéria-prima deve ser composta apenas de grãos maltados no Japão. Já a maturação deve ser de no mínimo três anos em barris de madeira de até 700 l. "Madeira" mesmo, sem especificar, o que pode deixar as coisas ainda mais interessantes.
Me deixa animado imaginar que os japoneses têm algo como um uísque maturado em alguma madeira como amendoim, amoreira ou ameixeira, que eles já usaram para licor", diz Porto.
Para iniciantes
Quer se aventurar no mundo do uísque japonês? Maurício dá algumas dicas.
No Brasil, por enquanto, há quatro rótulos disponíveis. Hibiki (blend), Yamazaki (single malt), Kakubin ("um blend econômico") e Chita ("single grain, uma categoria bem rara"). Todos da Suntory. Você pode encontrar os rótulos da Nikka em sites que entreguem no Brasil.
Para um highball, escolha um japonês mais simples, como o Kakubin. O highball japonês deve ser "absurdamente gelado: uísque, gelo e club soda (ou água com gás), tudo gelado". Em geral, uma dose de uísque para três de club soda.
Para tomar puro, vá de Hibiki e Yamazaki. Ou beba com gelo.
Segundo o site "Japanese Whisky", a forma mais comum de servir uísque no país é a "mizuwari": em um copo cheio de gelo acrescido de duas doses de água mineral para cada dose de destilado.
Chita vai bem puro ou no highball.
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