Tênis com sangue humano às cruzes fashion: quando a moda provoca a religião
LIl Nas X está prestes a frentar uma luta judicial contra a Nike depois de lançar o sneaker 666. O "tênis de satanás", como foi apelidado pelo rapper e o coletivo de arte MSCHF, contém gotas de sangue humano misturadas à tinta vermelha na sola acolchoada com bolhas de ar.
O modelo traz ainda referência ao versículo bíblico Lucas 10:18: "Então ele lhes disse: 'Vi Satanás cair do céu como um raio'."
Polêmico por si só, o tênis faz parte da divulgação da nova música lançada pelo cantor, "Montero (Call Me By Your Name)", em que o rapper aparece escorregando por um poste de stripper do céu ao inferno — o que, segundo ele, é uma crítica à opressão da igreja contra a comunidade LGBTQI+, a qual ele pertence.
O tênis não é exclusivo por brincar, se cabe aqui essa palavra, com elementos sagrados.
Ao contrário das ferrenhas críticas contra Lil Nas X, a Nike não se envolveu contra o MSCHF quando, em 2019, o coletivo lançou o "Jesus Shoes". Esse cruzou um caminho inverso ao do rapper. Em vez de fazer uma referência ao inferno e o diabo, prestou uma homenagem a Deus, com direito a crucifixo dourado amarrado no cadarço e água benta na sola com o Nike Air Max 97.
A ideia, como foi anunciada no seu lançamento, era com que seus clientes se sentissem abençoados caso desembolassem 2,7 mil euros, cerca de R$ 14 mil.
Apesar de todas as contradições, as duas peças têm algo em comum: bastou minutos para que se esgotassem das prateleiras on-line.
A moda nada cristã
Assim como não é novidade os tênis navegarem sobre esses mares que se dividem ao meio, não é inédito também que a moda seja usada como artifício para questionar os valores cristãos.
Na década de 80, Madonna se tornou um dos nomes indesejados da igreja depois de lançar o videoclipe "Like a Prayer" com o colar de uma cruz, ao mesmo tempo que as queimava — além de rezar para um santo negro. Outro ponto era o vestido preto e decotado que deixavam as pernas de fora.
"Se você seguir os princípios da religião, existe algo sobre mostrar lingerie, usar lingerie como roupa exterior, o que é muito pecaminoso de alguma forma. Ela estava brincando e empurrando esse limite", opinou a figurinista do clipe "Like a Prayer", Marlene Stewart, em entrevista à Vogue, publicada em 2018.
O que é certo e errado?
Na moda, essa resposta pode ser controversa. Enquanto os críticos descreveram a coleção inspirada em freiras de Jean Paul Gaultier, do final dos anos 1980, como "chocante e de mau gosto", designer como Gianni Versace, Dolce & Gabbana e Alexander McQueen foram enaltecidos por levar o divino as suas roupas.
O trabalho de McQueen inclusive ganhou destaque na exposição "Heavenly Bodies: Fashion and the Catholic Imagination", uma das maiores no Met.
Em Dante, como foi nomeada a coleção, retratou-se uma visão alegórica da vida após a morte com a seguinte e polêmica afirmação do estilista: "Acho que a religião causou todas as guerras do mundo, e é por isso que mostrei em uma igreja".
As peças traziam jaquetas de ouro desconstruídas, corpetes lilases, cocares de chifre, brincos de garra de pássaro e máscaras cobertas de crucifixo. McQueen também usou uma máscara com a figura de Cristo crucificado, pertencente ao seu amigo e fotógrafo Joel-Peter Witkin.
Esse espetáculo é visto por muitos hoje como o responsável por alavancar a carreira do artista no universo da moda.
Entre a cruz e a Chanel
Na década de 1930, a grife francesa Chanel deu à luz uma de suas coleções mais memoráveis, feitas em colaboração com Fulco Santo Stefano della Cerda, duque de Verdura.
Os braceletes eram esmaltados com cruzes de Malta adornadas com joias coloridas as estampavam. Essa cruz, ao longo do tempo, se tornou uma das marcas registradas dos designs de joias da Chanel. Inúmeras fotografias inclusive mostram a própria Coco Chanel usando-os.
Como resultado, os acessórios Chanel-Verdura proporcionaram aos consumidores uma forma sofisticada de exibir simultaneamente moda e religião.
Até hoje, repórteres de moda continuaram a mencionar a influência de Chanel no reino das joias, especialmente o uso da cruz de Malta. Em 1988, a coleção do estilista Yves Saint Laurent foi vista pela mídia como "uma homenagem inconfundível a Chanel", já que as joias que adornavam seus modelos incluíam cruzes de Malta.
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