Jornalista viaja sozinha na Ásia em busca do que sobrou da União Soviética
Visitar a Rússia é um caso de amor e ódio.
Para Erika Fatland, tudo por ali parece ter um deprimente ar de decadência e a população, cara de poucos amigos. Essa norueguesa odiou o país quando esteve lá pela primeira vez, aos 18 anos, e na segunda também, quando voltou para estudar russo. Porém, acabou se encantando por determinados aspectos, como contou em entrevista a Nossa:
Basta continuar voltando à Rússia, mesmo sendo desagradável e desconfortável, para se dar conta de que é simplesmente o país mais fascinante da Terra"
E ela decidiu ir além e cruzar as fronteiras (e não foram só as geográficas).
Erika lançou em março no Brasil o livro-reportagem "Sovietistão" (editora Âyiné), um relato corajoso de sua viagem solitária de cinco meses pela Ásia Central, em países como Turcomenistão, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão.
Antropóloga e jornalista, a autora deixou as comodidades da Noruega para investigar o que sobrou da extinta União Soviética nesses países que têm em comum mais do que "istão" no nome. De origem persa, o sufixo significa "lugar de?", mas parece impossível ter algum sentimento de pertencimento àquelas culturas tão particulares.
A viagem de Erika começa pelo Turcomenistão, "até o momento, o país mais estranho que já visitei".
A capital Ashgabat, por exemplo, é "a cidade do mundo com mais mármore por metro quadrado", título confirmado pelo Guinness World Records, e carros que não sejam brancos estão proibidos de circularem na cidade, devido à superstição do presidente atual, Gurbanguly Berdimuhamedow.
Como em um roteiro de Borat, o personagem fictício que levou o vizinho Cazaquistão para o mundo, as excentricidades do Turcomenistão incluem também a mudança dos nomes dos meses e dias da semana para homenagear o então presidente do país e sua mãe.
Após sua morte, em 2006, Saparmyrat Nyýazow foi sucedido por seu próprio dentista.
Em um texto sem rodeios, a autora vai costurando suas histórias pessoais com detalhes históricos ou curiosidades da região sem ser didática nem desfilar conhecimentos enciclopédicos. Sua escrita ágil vai de histórias sobre Genghis Khan à ditadura no Turcomenistão.
Apesar da infraestrutura precária e das dificuldades que aqueles países impõem a forasteiros, Erika destaca a extrema hospitalidade de sua gente e a emocionante capacidade de dividir o pouco que tem.
Embora esteja cada vez mais fácil obter um visto de turista, os trâmites são sempre dentro dos burocráticos padrões soviéticos de quem esteve isolado do mundo por décadas e a indústria do turismo ainda engatinha, de certa forma barrada por uma população que pouco fala inglês, sobretudo no interior.
O fato de ser pouco conhecido e tão pouco visitado faz parte do charme. A Ásia Central ainda é uma joia escondida. Vá antes de todo mundo"
Conhecido como o "Coração da Rota da Seda", antigo caminho comercial entre a Europa e o Extremo Oriente, o Turcomenistão, por exemplo, não recebe nem 10 mil turistas estrangeiros por ano.
Já o turismo oficial do Cazaquistão tenta pegar carona no sucesso do politicamente incorreto Borat, que aliás foi gravado na Romênia, e incorporou em suas campanhas o bordão "Very nice" desse personagem cômico que tanto deu fama (e dor de cabeça) ao ator britânico Sacha Baron Cohen.
Só não tente encontrar um endereço por ali. Em Aktau, cidade portuária cazaque, as ruas não têm nomes, exceto a avenida do Presidente.
Turismo a la Coreia do Norte
Mulher e quase sempre sozinha nas viagens, Erika não esconde certo fascínio em visitar países sob regimes autoritários.
E talvez esse seja o melhor do livro "Sovietistão", cujo texto desafia e questiona certas medidas locais, como a proibição de uso de redes sociais no "Ditadoristão", como a autora chama o Turcomenistão, em um dos capítulos do livro. Quando questionada pela reportagem sobre as dificuldades de viajar por uma região, historicamente, conflituosa, Erika diz:
As ditaduras são provavelmente os países mais seguros do mundo. Há polícia em todos os lugares"
Para ela, fazer turismo no Turcomenistão é como visitar a fechada Coreia Norte. Curiosamente, ambos países são os únicos do mundo que não reportaram nenhum caso de coronavírus, segundo a Organização Mundial de Saúde.
Para controlar os passos dos estrangeiros, só é possível viajar com uma agência de viagens autorizada pelo governo e os turistas precisam estar acompanhados por um guia na maior parte do tempo, "exceto na hora de dormir".
"Há olhos e ouvidos por toda parte", descreve Erika, que acredita que as livrarias são os melhores termômetros de como as coisas vão em um país: "A oferta de livros nas prateleiras costuma dizer mais sobre seus habitantes e políticos do que todos os museus somados", conta. "A Mira, em Ashgabat, é considerada a melhor biblioteca do Turcomenistão, mas parece é pequena e tem horários de atendimento tão esdrúxulos que acaba nunca sendo frequentada".
Apesar dos perrengues, a autora não descarta a possibilidade de voltar para destinos como o Uzbequistão, onde destaca a riqueza histórica de cidades como Samarcanda, uma das cidades mais importantes da Rota da Seda, e Bukhara, com seu centro histórico declarado Patrimônio Mundial pela Unesco.
Erika gostaria também de ir outra vez para o Quirguistão, cuja variedade de trilhas e beleza cênica deram ao país o título de "Suíça da Ásia Central". Porém esteve no país durante o outono, quando as baixas temperaturas impedem caminhadas nas montanhas.
Na opinião da jornalista, porém, a coisa mais perigosa que fez durante essa viagem foi entrar em um carro. "A corrupção é generalizada na Ásia Central, e a maioria das pessoas simplesmente suborna alguém para conseguir uma habilitação, sem nunca ter tido aulas de direção".
Não à toa, o pequeno dicionário de turcomeno que Erika levou na bagagem, "um misto de dicionário e guia de sobrevivência", trazia frases úteis do tipo "por favor, diminua a velocidade!", "a energia acabou" e "o gás está desligado".
Tem, mas acabou
Embora dissolvida há quase três décadas, a União Soviética, "um gigantesco experimento social sem paralelo na história mundial", ainda ecoa naquelas ex-repúblicas sob comandado do Partido Comunista, onde a escritora encontrou admiração e repúdio, em um mundo de passado comunista que vive em uma eterna "nostalgia soviética".
Há remanescentes da época em toda a Ásia Central, especialmente, nos países mais pobres, como o Quirguistão e Tadjiquistão, onde a maioria dos edifícios e infraestrutura atuais foram construídos durante a União Soviética"
Durante a entrevista, Erika lembra também que a saudade daqueles tempos é maior entres os mais velhos, cuja juventude foi marcada pela escolarização em massa, alta taxa de empregados e "todos podiam viajar de férias, dentro da União Soviética".
Para atualizar os fatos ocorridos desde que ela visitou a região, em 2013, a edição que chega ao Brasil traz também um posfácio com detalhes das notícias mais recentes, como a morte do presidente ditador do Uzbequistão, Islam Karimov, e o crescente cerco à comunidade LGBT no Quirguistão.
Mas como lembra a própria autora, naquela região "qualquer coisa pode acontecer".
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