"Meu avô, quando vivo, ficava numa ponta da mesa e, minha avó, na outra". Quatro filhos, dez netos e alguns agregados completavam os assentos. Um suspense pairava no ar e os olhares gulosos iam direto para os pratos até que... "eles diziam: 'vamos comer'. E todo mundo arrebentava, comia muito".
Essa cena poderia estar num filme italiano, especialmente porque os imigrantes Nello Roberto de Rossi (1921-2013) e Ereclina de Rossi tiveram as suas trajetórias marcadas pelo audiovisual. Mas é, na verdade, a forma como um dos netos, Noa Stroeter, descreveu a relação da família com a comida. "Temos um prazer grande por comer. Amamos muito".
Ereclina é conhecida como Dona Rina. Com 87 anos, é uma das mammas e nonnas que São Paulo teve a sorte de receber. Junto com o marido, fundou a prestigiada cantina Nello's, em 1974.
Rina foi criada em Roma numa época que mulheres tinham que saber tudo sobre a casa e o casar — cozinhar, é claro, estava entre as tarefas.
Um dos pratos que aprendeu com os seus pais foi o linguine al tonno, massa simples preparada com atum de lata.
Ela conta:
Era uma tradição de véspera de Natal porque tem peixe. Continuei fazendo aqui para a minha família. Meus netos adoram, não importa a idade. Faço há anos".
Clique no link abaixo para ter acesso à receita completa:
No Brasil, a pedida virou símbolo da reunião de parentes e é frequentemente reproduzida pelos integrantes da família por dois motivos.
O primeiro é que é fácil, fácil. Além da massa e do atum, a receita só pede basicamente tomate, alho, pimenta e salsinha. Quem quiser, também pode colocar aliche para realçar o sabor de peixe.
Outra praticidade é que o linguine não é feito do zero, mas comprado no mercado, de marcas que oferecem a versão grano duro. Segundo a filha Daniela, a ideia é garantir o ponto certo mesmo com o número alto de convidados.
A segunda razão é o laço afetivo. Noa dá um exemplo: "tem dias que eu penso: 'hoje, aconteça o que acontecer, eu preciso fazer o linguine. Traz um baita conforto".
Apesar dos esforços dos filhos e netos que adoram a arte de levantar o garfo, é difícil alcançar o mesmo sabor de quando a comida era feita pela nonna — pela idade, Rina não cozinha mais com a frequência de antes.
O palpite de Noa sobre o mistério é que a vó sabe exatamente como equilibrar cada ingrediente graças a sua personalidade tranquila. "Ela já passou por tanta coisa que virou anjo".
Linguine em fotos
Força, graciosidade e muita comida
Rina nasceu em 1933. Ainda pequena, perdeu a casa onde vivia com os pais e os cinco irmãos para a Segunda Guerra. A família foi realocada em uma escola de Roma que teve as salas transformadas num acampamento cheio de beliches.
O sacrifício não é uma coisa que me deixa triste. Eu luto e faço o que tenho que fazer. Aguento tudo"
Apesar do pai conservador, ela sempre foi despachada e confiante. Tinha o ímpeto para se aventurar nas oportunidades que surgiam. A desenvoltura — possível de reparar até nas fotos desta matéria — conquistou produtores que à época faziam história escrevendo as primeiras décadas do cinema italiano no complexo de estúdios chamado Cinecittà.
Num dos sets que trabalhou como figurante, conheceu Nello, considerado um pequeno astro pela participação no filme "Piccoli Naufraghi" (traduzido para "Os Pequenos Aventureiros").
Nello, que chegou a tentar carreira em Nova York e a trabalhar como assistente de Roberto Rossellini, um dos mais importantes cineastas do neo-realismo italiano, levou Rina para viver um "sonho americano" em 1954.
O casal se estabeleceu em Nova York e, ao longo de duas décadas, teve quatro filhos. Em 1973, o falecimento de Augusto, irmão muito admirado por Nello, convocou a família a vir para o Brasil ajudar no encerramento do restaurante Trastevere.
Encantados por São Paulo, Rina e Nello decidiram reconstruir a vida por aqui, abrindo uma cantina com pratos familiares. "A relação da minha avó com a comida era uma carta na manga", conta Noa.
A dupla encontrou um imóvel em Pinheiros: "tinha três quartos em cima e dava para montar o restaurante embaixo. Era certo para a gente".
A filha Patrícia foi direcionada para ajudar a mãe na cozinha. O filho Massimo ficava no salão com o pai atendendo os clientes. "Daniela era pequena, mas com 9 anos já podia ficar no caixa", diz Rina.
Daniela, por sua vez, é categórica:
A comida nos salvou a vida"
O estabelecimento Nello's abriu as portas ao público sem nem ter cardápio. Recebia poucos clientes até ser descoberto por um crítico gastronômico e, por consequência, por uma grande colônia de imigrantes. Segundo Rina:
No restaurante, acontece assim: no primeiro momento, é freguês. Mas, depois que a gente conta da vida, viramos uma família grande"
"O Nello's foi um ponto de encontro. Às segundas, quando o restaurante fechava, o bicho pegava à noite. Os italianos tomavam grapa e jogavam baralho enquanto cantavam músicas do país. Minha avó cozinhava para todo mundo", conta Noa.
Pratos que evocam suas raízes, como o linguine al tonno, foram o pano de fundo para que Dona Rina criasse a sua própria e deliciosa Itália no Brasil, junto ao Nello — que, uma curiosidade, também ficou famoso nas telinhas por aqui, protagonizando o clássico comercial do bordão "bonita camisa, Fernandinho".
A vinda do casal para São Paulo e a fundação do Nello's já faz quase 50 anos. Mas a expectativa é que, com a gastronomia, essa história viva ainda mais:
Ter uma boa comida na família é garantir que cada um sempre vai levar essa lembrança por onde for".
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