Chef leva tempero brasileiro à França e conquista parisienses com acarajé
A primeira vez que a baiana Mariele Goés, 33, pisou em uma cozinha profissional imediatamente se apaixonou por gastronomia. O encantamento foi tamanho que ela deixou o trabalho como jornalista em uma revista de circulação nacional em São Paulo, se tornou chef em Paris e hoje é dona do seu próprio estabelecimento, difundindo o tempero brasileiro na capital da alta cozinha.
O que eu preparo tem um pouco da minha história: sou baiana, de Salvador; morei em São Paulo e tenho muitos amigos mineiros. Os pratos que ofereço no restaurante refletem a minha vida", resume.
O caminho até abrir o negócio e conquistar uma clientela brasileira e francesa, no entanto, não foi fácil. Em 2015, Mariele pensou em unir o jornalismo e o amor pela cozinha para escrever sobre comida e crítica gastronômica. Iniciou, então, uma graduação de Gastronomia em São Paulo, mas logo mudou de carreira.
Fez estágio no D.O.M., comandado pelo famoso chef de cozinha Alex Atala, onde preparava as bases das refeições como os molhos e o aligot, um purê de batata finíssimo, misturado com três queijos.
Com a prática dos estágios e do curso, ela aprendeu as bases da cozinha francesa. O que facilitou quando decidiu estudar gastronomia in loco.
"Eu era um pouco mais velha quando comecei a cozinhar. Pensei que teria mais chances se fosse estudar em Paris", conta. O plano era morar um ano no exterior e voltar para o Brasil com as técnicas francesas. Mas, em 2021, completa cinco anos no país.
Cozinha ou exército?
Mariele estudou na Ferrandi, uma tradicional e centenária escola de gastronomia francesa, em Paris. Passou por uma rigorosa seleção para entrar no curso, em 2016. Sua turma tinha 12 pessoas e, assim como ela, todos eram estrangeiros.
"A escola é maravilhosa. Eles têm equipamentos e produtos que a gente tem dificuldade em encontrar no Brasil. Preparamos pratos específicos de diferentes regiões da França como Bolonha do Mar e Bretanha", explica.
Além das atividades da escola, estagiou em um restaurante prestigiado com uma estrela Michelin, mas não gostou do trabalho.
Quem escolhe ser cozinheiro de alta gastronomia na França é como se entrasse em um exército. O ambiente do restaurante era super duro e competitivo. Trabalhava 15 horas por dia. O chef era muito agressivo. Eu gosto de cozinhar, mas não queria estar em um ambiente tóxico", define.
Por isso, buscou alternativas fora do meio estrelado. Trabalhou na cozinha de um projeto franco-japonês e como chef em um restaurante vegetariano.
Acarajé: bolinho baiano cai no gosto dos franceses
Na França, Mariele sentia saudade do tempero brasileiro. Foi então que ela contou para Loïc Marchand, o seu então namorado francês — hoje marido — sobre o acarajé, o famoso bolinho frito de massa de feijão-fradinho e azeite de dendê.
A descrição logo o deixou com água na boca e Loïc pediu para provar. Mariele procurou a iguaria em restaurantes brasileiros, mas não encontrou. O jeito foi comprar os ingredientes e fazer em casa.
"Dá um trabalho enorme preparar o acarajé. Leva uns 3 dias para fazer tudo. É feito de feijão. Então tem que triturar, tirar a pele, deixar de molho, fazer a massa e os acompanhamentos", resume.
O esforço valeu a pena: Loïc adorou. Mariele organizou, então, uma janta com amigos tendo o acarajé como prato principal e postou o encontro nas redes sociais. Além da chuva de likes, recebeu comentários sugerindo que vendesse os bolinhos. Aceitou a sugestão e começou a organizar encontros uma vez por mês em sua casa.
"Eu divulgava no Facebook, na comunidade brasileira. Preparava do meio-dia até as 20h. O Loïc recebia as pessoas enquanto eu fritava e recheava os acarajés. Eles comiam e iam embora", conta. "Foi muito do boca a boca. Um cliente falava para outro. Cheguei até a receber clientes franceses." Logo a sua sala ficou pequena para o tamanho do público.
O próximo passo seria encontrar um local fixo para vender os quitutes — tarefa difícil quando se trata de Paris.
Isso porque o preço médio do metro quadrado na capital custa em média 10 mil euros, ou seja, mais de R$ 60 mil. Para se ter uma ideia, no Rio de Janeiro, considerada a cidade mais cara do Brasil de acordo com relatório da revista "The Economist", o metro quadrado custa cerca de R$ 11 mil.
"Eu não tinha dinheiro para investir", conta Mariele. "Vim para a França como estudante e estava sem emprego fixo, vendendo acarajés." Teve a ideia de comprar uma barraquinha para vender a comida baiana em feiras ou até mesmo investir em um food truck. Mas, na época, nem ela nem o marido sabiam dirigir.
Um restaurante para chamar de seu
Durante as suas pesquisas, descobriu um restaurante brasileiro em um mercado municipal em Paris, na região de Saint-Quentin. Em outubro de 2017, Mariele foi convidada para vender acarajés no estabelecimento durante um dia e, em dezembro, a proprietária a procurou para passar o ponto.
Como a dona do imóvel tinha aluguéis atrasados, o combinado seria que Mariele quitasse as dívidas na prefeitura e o local seria dela. "Eu não tinha dinheiro. Organizei uma mega vaquinha, pedi dinheiro emprestado para todo mundo. Paguei em torno de 13 mil euros. Não era muito."
Em meados de 2018, abriu as portas do "La Bahianaise", em francês significa "A Baiana". À medida que conquistava clientes, Mariele pagava as dívidas com os familiares e amigos e comprava os equipamentos profissionais. Após dois anos, reformou o local. "Foi uma prova de paciência. Não foi tudo lindo desde o início."
Se antes as pessoas vinham até o restaurante por indicação, hoje muitos experimentam a comida brasileira quando passam em frente ao local.
A cozinha é aberta e tem um balcão. É muito clara, com muitas luzes. Senti que a clientela mudou. Hoje recebo metade de clientes brasileiros e metade franceses. No início, a maioria era brasileiro."
Em tempos de pandemia e entre lockdowns na França, o restaurante se encontra temporariamente fechado, mas com promessa de retorno.
Tempero de avó
Aos poucos, os franceses se familiarizam com os pratos do Brasil, um tipo de culinária não muito conhecida no país.
Os franceses geralmente só conhecem a caipirinha", aponta Mariele.
A ideia inicial era oferecer somente acarajé, um quitute conhecido dos clientes. Mas, como cozinheira formada, a chef expandiu o cardápio. "Preparo comidas de diversas regiões do Brasil e ofereço pratos menos conhecidos no exterior, principalmente da culinária baiana, como moqueca e bobó de camarão."
Ela também cozinha comida mineira como feijão tropeiro, vaca atolada e galinhada. E, claro, o famoso pão de queijo.
Nas sobremesas do restaurante, Mariele volta no tempo e relembra a sua infância. Quando criança, viajava de Salvador para Conde, uma cidadezinha litorânea na Bahia, onde a sua mãe nasceu.
Lá, comia os doces típicos da feira. "Umas senhoras vendiam bolos de mandioca, de aipim, de milho. Toda vez que a gente ia passear, a minha avó comprava."
Esses tipos de doces comuns no Nordeste estão no menu. Além dos clássicos como pudim e manjar de coco com calda de ameixa. "Alguns clientes brasileiros lembram da comida da mãe e da avó quando experimentam os pratos do restaurante." Uma saudade a cada garfada.
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