Lambic, a cerveja que usa leveduras selvagens e até aranhas na produção
Em "As Flores do Mal", clássico de Charles Baudelaire, há um poema chamado "Sobre a Estreia de Amina Boschetti", sobre a apresentação dessa bailarina em Bruxelas, em 1864. O autor encerra assim: "Que sobre a graça em fogo o velche só pragueja/ E que, a Baco vertendo-lhe um vinho borgonha,/ Responderia o monstro: 'Prefiro cerveja'".
"Velche", as notas de rodapé da edição brasileira (Penguin) informam, é um termo usado para se referir a celtas, gauleses, pessoas grosseiras ou francófonos que tiveram contato com germanófonos. No caso, Baudelaire provavelmente se referiu aos belgas.
É sabido que o poeta francês desprezava a Bélgica, país onde viveu seus últimos anos produtivos. Nesses versos, ele não perdeu a oportunidade de deixar claro o que pensava da cerveja feita naquele país, em especial a Faro, um tipo da família das Lambics. "A Faro é tirada da grande latrina, o Senne. Essa bebida é assim preparada com as fezes da cidade e é assim que Bruxelas bebe sua própria urina há séculos."
De fato, o Senne era um rio bastante sujo no século 19 (hoje, canalizado sob a capital belga). Mas o comentário serve hoje, apenas, para mostrar que Baudelaire era bom na arte de ofender e ser desagradável — e que a Lambic não é uma cerveja para qualquer um.
Gostinho de Idade Média
Lambic é uma família de cervejas feitas em Bruxelas e na região de Pajottenland, na Bélgica. Ela é a mais antiga das cervejas que conhecemos hoje, produzida desde pelo menos o século 13. É um registro de como se fazia a bebida na Idade Média, quando não havia uma fermentação controlada na produção.
À medida que aprendiam técnicas novas, os cervejeiros adotavam e espalhavam as tendências. Por exemplo: adicionar a espuma da cerveja feita anteriormente facilita a fermentação, por causa das leveduras contidas nela — conhecimentos que a ciência comprovaria bem depois, a partir do trabalho de Louis Pasteur, em 1857.
Com o tempo, todo mundo adotou novas práticas de fermentação, o que propiciou o desenvolvimento das ales e lagers. Mas a turma do Ducado de Brabante, um estado medieval nas atuais Bélgica e Holanda, foi relutante. "Em 1420, Jan IV, o duque de Brabante, querendo melhorar a qualidade da cerveja local, criou uma lei que aumentava para 37,5% a proporção de trigo na fórmula", explica o site oficial da Horal (Alto Conselho das Tradicionais Cervejas Lambic). A cevada responde pelo restante, uma proporção seguida, em geral, até hoje.
Eventualmente, o uso controlado de leveduras também conquistou Brabante, mas alguns cervejeiros, especialmente em Bruxelas e em Pajottenland, permaneceram fiéis ao método antigo, a fermentação espontânea. Essa é a grande característica das Lambics.
E o lúpulo, como fica? Os cervejeiros de Lambic de hoje também usam, mas como não querem seu aroma e sabor amargos, recorrem ao chamado lúpulo envelhecido (com mais de um ano), que perdeu o amargor.
O resultado são cervejas "selvagens", que chamam atenção pelo aroma de cavalo, celeiro, suor, e também pelo sabor vínico, que remete a sidra, com acidez extrema ou presente e final seco. São pouco amargas e a graduação alcoólica varia um bocado, de 2 a 8%.
"Aranhas pelo chão"?
Resumidamente, os cervejeiros de Lambic misturam cevada fervida com trigo não maltado, aquecem repetidas vezes, acrescentam o lúpulo envelhecido e deixam o mosto exposto para resfriar. É então que os microrganismos do ambiente dão o ar da graça e começam os trabalhos. Essa é a chamada fermentação espontânea.
Um deles é a Brettanomyces bruxellensis, levedura que, apesar do nome, não é encontrada somente na região de Bruxelas. Podemos achá-la na superfície das frutas que compramos na feira, mas é a mistura de microrganismos no ar do vale do Senne, em Pajottenland, que cria o ambiente propício para as Lambics. Se fosse para controlá-los e manipulá-los, seria uma fermentação padrão, não o método selvagem, natural e espontâneo dessa técnica ancestral.
Para que as leveduras possam trabalhar da melhor forma, há uma série de cuidados. A temperatura ambiente precisa ficar entre -8ºC e 8ºC, então a produção se concentra nos meses mais frios, entre outubro e maio.
Além disso, manter os tonéis abertos e permitir que apenas o ar e suas criaturas fantásticas e invisíveis ao olho nu interajam com o mosto é um desafio. É preciso lidar com as moscas.
Em 2014, um estudo belga comprovou que esses indesejados insetos adoram leveduras selvagens. Os produtores sabem bem disso, e a solução usada está na natureza. Aranhas fazem o serviço de "segurança" do líquido. As teias mantêm as moscas afastadas e ainda dão uma atmosfera lúgubre e mágica às cervejarias.
Outra curiosidade da produção das Lambics é que não se pintam as tábuas e vigas de madeira do ambiente. No início do século, autoridades sanitárias, que toleram as aranhas, exigiram que uma cervejaria, a Boon, pintasse as paredes. Ela obedeceu, mas em seguida espirrou cerveja nas tábuas, para que os microrganismos voltassem a ocupar o ambiente.
Tipos e marcas famosas
Lambic é uma pequena família de cervejas, com poucos membros. Em geral, a Lambic é uma mistura de duas cervejas diferentes. A Gueuze é feita com uma Lambic jovem (um ano) e uma velha (até três anos), em que a mais jovem tem refermentação na garrafa. Por isso, é muitas vezes chamada de "champanhe da Bélgica".
Por sua vez, a Faro, é um blend de Lambic com uma outra cerveja e açúcar mascavo. Kriek é uma Lambic refermentada com ginja, ou cereja-ácida. Há Lambics frutadas também de framboesa, pêssego, morango e outros sabores.
Dentre as marcas mais conhecidas, destacam-se, com foco nas frutadas, Lindemans, Mort Subite e Belle-Vue. A Mort Subite hoje faz parte do portfólio da Heineken e a Belle-Vue, da AB InBev.
Já citada, a Boon se dedica mais aos estilos tradicionais, como Gueuze. Ela fica em Lembeek, cidade que já foi apontada como a origem do nome "lambic".
Em 1900, em Lembeek, um homem chamado Paul Cantillon começou a vender aquela que se tornaria a mais celebrada das Lambics. Mas ele só fazia blends: comprava outras cervejas e as misturava. Só em 1937 Cantillon iniciou sua produção, com a entrada dos filhos Robert e Marcel no negócio.
"Os anos 1950 foram gloriosos, com pai e filhos fazendo até 55 levas por ano. Mas com o desaparecimento da tradicional clientela de cafés no fim dos anos 1960, a produção caiu", explica o autor francês Jean Guignard no livro "Lambic".
Em 1978, Claudia, neta do fundador, e seu marido criaram um museu dedicado à Gueuze para tentar resgatar as finanças da empresa. Deu mais que certo. Em 1989, eram 11 mil visitantes. Em 2015, o número chegou a 50 mil.
Futuro ameaçado
A morte por esquecimento parece hoje improvável para as Lambics — uma paixão entre beergeeks. Mas o perigo agora é outro. No começo do século 20, os cervejeiros tinham uma janela de cerca de 165 dias por ano para trabalharem. Em 2018, esse período encolheu quase um mês, para 140 dias, segundo um estudo. O motivo, adivinha, é o aquecimento global.
Com menos dias frios no ano, a produção de Lambic fica comprometida. Em 2015, uma amostra do que pode ocorrer horrorizou fãs de cerveja mundo afora. Devido a um outono excessivamente quente, a Cantillon se viu forçada a jogar fora a produção de três dias de cerveja, segundo o jornal britânico "The Guardian".
As mudanças climáticas podem tirá-los da natureza e relegá-los às paredes de museu. O que seria uma grande perda, pois essas cervejas já estão eternizadas, inclusive em museus.
Acredita-se que a cerveja que vemos na pintura "A Boda Camponesa", de Pieter Brueghel, seja uma Faro, porque era o que a gente do campo bebia na Bélgica do século 16. Foi mal, Baudelaire, mas é melhor ter Lambics no museu e no bar.
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