Na maior faixa de areia contínua do mundo, encontramos tudo o que não se espera em uma praia: tempestades de areia, dias que viram noites sem aviso prévio, águas turvas e revoltas e uma vida selvagem curiosa que sempre ronda a barraca dos raros campistas.
Mas o professor de educação física Gustavo Sbrana Sciotti, 31, é insistente e encarou mais de 220 quilômetros de caminhada na Praia do Cassino. E não foi só uma vez.
Sciotti acaba de lançar o livro "Abismo Horizontal: Uma Jornada Solitária pela Maior Praia do Mundo" (editora Chiado), um relato intenso sobre sua caminhada solitária de 10 dias, entre o município de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, e o Arroio Chuí, a divisão natural entre o Brasil e o Uruguai. E alerta em entrevista a Nossa:
Você vai ser testado até o fim. Se não estiver preparado para enfrentar o inferno, não se lance nessa caminhada sozinho"
Em 2017, ele já tinha tentado a travessia, mas desistiu de completar a caminhada, depois de 140 quilômetros do ponto inicial, devido ao cansaço extremo e aos "pés muito feridos por bolhas horríveis".
O título do livro pode soar poético ou até mesmo parecer mais uma daquelas obras de autoajuda. Mas em se tratando do extremo sul brasileiro, o abismo é um areião batido que não nos deixa ver o horizonte. Daí o termo "abismo horizontal" para definir a praia.
"Mar de um lado, dunas de outro e, à frente, um panorama sem fim", descreve Sciotti em um dos capítulos.
Travessia estafante
"Por mais que você ande 40 quilômetros por dia, o cenário é o mesmo e não tem fim. Aquilo bagunça a cabeça, parecia que eu estava na rodinha do hamster", compara o caminhante que terminou a empreitada com dez quilos a menos.
Em pouco mais de 150 páginas, ele não economiza nos adjetivos (e nas sensações extremas) para descrever aquela região imprevisível e de mudanças bruscas, onde as noites são tão escuras "que não fazia diferença andar com os olhos abertos ou fechados", e o pior "pode ficar definitivamente insustentável".
Aliás, a "maior praia do mundo" é assunto polêmico até hoje, já que o título dado pelo Guinness World Records, nos anos 90, não considerava que aquela extensa faixa de areia incluía também as praias do Hermenegildo e da Barra do Chuí, na vizinha Santa Vitória do Palmar.
Mas quem encara a Praia do Cassino tem objetivos mais nobres do que as rixas regionais. E um deles é a total conexão com tudo aquilo que se vê ao longo da caminhada (ainda que a mente sempre insista em nos desviar a atenção).
"A cada passo que dou, estou mais perto do Chuí"
Essa era a frase que Gustavo Sbrana Sciotti sempre tinha em mente para enganar o psicológico abalado pelas dores, medos e dificuldades extremas.
Enquanto isso, a maior praia do mundo ia passando diante dos olhos.
A praia em si já é o destaque. Não tem nada parecido no Brasil e pouca gente conhece, inclusive os próprios gaúchos"
Entre as experiências que chamou a atenção do paulista é a fauna abundante em toda a extensão da praia, como aves, capivaras, lontras, graxains (raposa-dos-pampas), golfinhos, pinguins e até jacarés em uma lagoa perto da Estação Ecológica do Taim, considerada o "pantanal gaúcho".
Aliás, essa unidade de conservação, entre Rio Grande e Santa Vitória do Palmar, é considerada uma das zonas mais ricas em aves aquáticas da América do Sul e um importante berçário de aves migratórias.
Cada trecho é um mundo completamente diferente. Tem deserto, lagoa, duna e até um concheiro, um verdadeiro cobertor formado por milhões e milhões de lindas conchas"
Outro cenário natural que o surpreendeu é a Lagoa Mangueira, uma formação de mais de 120 quilômetros que segue paralela ao oceano, formada apenas por águas da chuva e de lençóis freáticos.
Terra de faróis
Separada do mar por uma sequência de dunas, que ao longo dos anos vêm enterrando as ruínas de um hotel abandonado, a lagoa abriga uma das atrações mais aguardadas do roteiro: os faróis.
É ali que fica o Albardão, um dos mais isolados do Brasil e com estrutura para receber hóspedes, desde que o pedido seja feito com antecedência ao 5º Distrito Naval da Marinha do Brasil.
Essa torre de 44 metros de altura em preto e branco foi inaugurada há mais de 110 anos como "o primeiro de uma rede que complementaria a iluminação da costa entre Rio Grande e a divisa com o Uruguai", de acordo com o Serviço de Sinalização Náutica da Marinha.
Ao longo da praia, o caminhante encontra ainda outras três construções do gênero (Verga, Sarita e Barra do Chuí).
A explicação para a concentração de tantos faróis a tão pouca distância é que a região já foi conhecida como o Inferno dos Navegantes, devido ao grande número de naufrágios naquele mar de águas agitadas. Só nas primeiras quatro décadas do século passado, a região abrigava 33 naufrágios.
O mais famoso deles é também um dos pontos altos da travessia da maior praia do mundo: o Altair, um cargueiro desmantelado que repousa na beira da praia desde 1976, a cerca de 22 quilômetros ao sul da cidade de Rio Grande.
"Embora muito no início [da travessia], passar por ele não deixa de ser uma vitória para aqueles que ousam realizar a travessia", analisa Sciotti, que chegou a aproveitar a sombra criada pelos escombros da embarcação para descansar.
Em tempos de países abertos para brasileiros e com trâmites devidamente feitos na fronteira, era possível seguir também em direção a um dos destinos mais fascinantes do vizinho Uruguai: Rocha.
Esse departamento abriga atrativos como o Parque Nacional Santa Teresa e os povoados Punta del Diablo e Cabo Polonio, onde o tempo costumava ser medido pelo número de barcos naufragados ou encalhados.
Dicas de sobrevivência
Na maior praia do mundo, prepare-se para um desgaste físico extremo, durante caminhadas em terreno arenoso e mala pesada (Sciotti andou com 27 quilos nas costas), ao longo de deslocamentos diários de cerca de 30 quilômetros.
Por isso, é fundamental levar bastão de caminhada, kit de primeiros socorros com itens como antisséptico, pomadas para assaduras e faixas para os pés machucados.
Fiquei seis dias sem tomar banho, as bolhas nos pés chegaram a infeccionar e as pernas e virilhas ficaram em carne viva por conta da areia e da umidade"
Sciotti iniciou a travessia com 5 litros de água, suficientes para os dois primeiros dias. Porém, sem nenhuma estrutura em quase toda a sua extensão, a trilha exige que as recargas seguintes sejam feitas em arroios próximos, daí a necessidade de levar também um purificador de água.
Impossibilitado de usar fogareiro por conta do vento forte, ele improvisava fogo em uma latinha de alumínio sob uma pequena panela, onde esquentava água para preparar macarrão instantâneo e outros alimentos liofilizados.
"É preciso levar comida que forneça calorias, como barras de cereais, frutas secas, enlatados e mix de oleaginosas, como amêndoas, castanhas e nozes. É uma questão de sobrevivência", recomenda.
Para as noites (sempre) frias, invista também em um isolante térmico, saco de dormir e barraca de melhor qualidade, além de lanternas de mão e de cabeça para os deslocamentos noturnos.
Mas para o autor, o mais importante é o preparo mental para encarar a imensidão daquele terreno isolado. Uma de suas dicas é fazer testes em lugares menos extremos, antes de viajar.
"A Praia do Cassino foi uma metáfora de vida para eu evoluir como ser humano. Foi uma jornada de auto conhecimento que beirou o espiritual", conclui.
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