Arqueo é pop: parque na Itália junta agricultura e arqueologia
Quando visitamos ruínas arqueológicas, mesmo aquelas situadas em lugares de natureza deslumbrante, tendemos a dedicar tempo, atenção, leitura, fotografias, selfies etc. às estruturas em si, ao legado arqueológico, às pedras e às estruturas destruídas, danificadas, abandonadas. O entorno é apenas isto: o entorno, um enfeite a mais na foto.
Mesmo nos exemplos mais notáveis, como Machu Picchu. Em sua inscrição como patrimônio da humanidade, a Unesco descreve a cidadela inca e suas muralhas, rampas e terraços como se tivessem sido esculpidos naturalmente, nas escarpas das rochas.
É uma descrição linda e certeira, que faz jus a um dos lugares mais fascinantes do planeta. Mas o foco são os resquícios de uma civilização. Os guias de Machu Picchu também, em geral, falam da posição das pedras, dos terraços não mais usados, da engenharia prodigiosa. É um tipo de turismo que sempre exige um exercício de imaginação. Afinal, observar sem pensar em como era a vida nesses lugares, o que se vê são apenas escombros.
Aí está, justamente, o fascínio nesse tipo de viagem. Em qualquer lugar, regiões que ostentam sítios arqueológicos tendem a explorá-los no turismo. Basta a situação política e econômica local permitirem.
No país recordista de patrimônios culturais da Unesco (50), um deles convida a olhar a herança cultural não apenas prestando atenção na arquitetura e na engenharia, mas também na agricultura. No Vale dos Templos, na Itália, pomares têm o mesmo valor que colunas dóricas.
Ruínas e pomares
Os gregos fundaram Agrigento, na Sicília, no século 6 a.C. A terra fértil propiciou abundância de grãos, vinho e azeite. A topografia foi generosa para a criação de bovinos e equinos. Em dois séculos, Agrigento se tornou uma das principais metrópoles do mundo grego, com uma população de pelo menos 200 mil pessoas. A conquista dos romanos não alterou significativamente a economia.
Na Idade Média, Agrigento iniciou seu período de decadência, mas nunca foi abandonada. Hoje é capital da província de mesmo nome e tem 59 mil habitantes.
Atualmente, o que se vê no vale é parte dessas ruínas (há muito ainda a ser descoberto). Elas são registros de uma época de opulência, e são ladeadas por amendoeiras, limoeiros e outras árvores também históricas. Mas nem sempre foi assim.
Em 1964, a Carta de Veneza foi lançada. Esse documento elencou as bases para a conservação de patrimônios que seria seguida na segunda metade do século 20. Dava muita atenção a ruínas, é claro, mas pouca às paisagens que as circundavam.
Dois anos depois, o Vale dos Templos foi declarado zona de interesse nacional. Em 1997, veio a consagração da Unesco. Os argumentos usados para declará-lo patrimônio cultural da humanidade diziam respeito às evidências de que aquela era uma das mais importantes cidades do mundo grego, ao testemunho de intercâmbio cultural mediterrâneo e à preservação da arquitetura dórica.
De olho no agro
Em 2000, o governo local iniciou essa transição para a agricultura. Com apoio da Universidade de Palermo, surgiu o Museu Vivo da Amendoeira. A ideia era preservar e promover a paisagem do vale, mas, antes disso, seria preciso restaurar. A área havia sido abandonada por agricultores, que nas últimas décadas migraram para cidades maiores.
Os mesmos aquedutos que mantiveram a terra irrigada por séculos resgataram os jardins que monges medievais mantinham com técnicas e variedades que aprenderam com os árabes.
O resgate dessa cultura agrícola não serviria apenas para recriar os tempos gregos, mas para manter viva toda a história desde então. O limão chegou à Sicília por volta do século 10, quando a ilha era um emirado. O legado de gregos, romanos, cristãos e muçulmanos percorre esses pomares. O parque voltou a produzir, além de limões, amêndoas, laranjas, figos, alcaparras, pistache, azeite e vinho.
O plano inicial era resgatar a cultura tradicional camponesa. Mas deu tão certo que o que era para ser uma paisagem viva envolvendo o belo esqueleto morto de uma civilização acabou virando um bem-sucedido projeto de agricultura orgânica. Um programa governamental de criação de empregos, cooperativas de trabalhadores e até a venda de experiências no trabalho do campo por meio do Airbnb esquentaram a economia local.
Lojinha de museu
Em 2005, o azeite, o vinho e outros produtos começaram a ser vendidos com a marca do parque, a Diodoros, cujo nome é uma homenagem a Diodoro Sículo, historiador grego, nascido na Sicília, que escreveu uma vasta obra de história universal no século 1 a.C.. Oliveiras de 700 anos, limoeiros com mais de um século, 300 variedades sicilianas de nozes, amêndoas e afins. Tudo isso cultivado de forma tradicional nos arredores de ruínas arqueológicas impressionantes.
O apelo é inegável. Poucos parques arqueológicos têm uma "lojinha de museu" assim, que vende o que é feito ali mesmo.
Com a agricultura de volta à ativa, em 2012 uma subespécie local, a abelha-negra-siciliana, foi reintroduzida no parque. Ela tem papel importante na polinização e na proteção das plantações, dispensando o uso de pesticidas. Para completar, seu mel também está à venda.
"Esses monumentos arqueológicos do período clássico encontram-se no meio de uma paisagem agrícola extremamente interessante, representativa de uma agricultura mista de sequeiro [técnica de cultivo em regiões de pouca chuva] que outrora dominou a paisagem da Sicília, onde, por razões ecológicas e sociais, o plantio de árvores prevaleceu sobre a lavoura", descreve o livro "Italian Historical Rural Landscapes" ("Paisagens Rurais Históricas Italianas", sem versão em português), editado por Mauro Agnoletti, especialista em estudos de paisagem e patrimônio cultural na Universidade de Florença.
Sabedoria antiga
Nem tudo são flores brancas de amendoeira, no entanto. O crescimento descontrolado de Agrigento ao longo do século passado e a construção de estradas e edifícios não autorizados minou a integridade do vale e fragmentou parte da paisagem, segundo Agnoletti. Mas com o parque conectado à comunidade local, econômica e culturalmente, sua preservação é cada vez mais importante.
A Carta de Veneza é considerada um documento um tanto obsoleto e há quem defenda a atualização de alguns pontos. Ela se opunha veementemente à reconstrução de monumentos históricos, algo que hoje é mais aceito pela Unesco, de acordo com as circunstâncias.
Heranças culturais ligadas à vida no campo podem não ter ainda a mesma atenção, apesar de a lista de patrimônios imateriais da Unesco, criada nos anos 2000, contemplar algumas delas, inclusive na Itália. É o caso da técnica de cultivo de vinhas na ilha de Pantelleria, uma tradição do tempo dos fenícios.
Mas a bem-sucedida experiência em Agrigento poderia inspirar outras regiões com sítios arqueológicos relevantes a resgatar as técnicas agrícolas ancestrais de seu entorno.
Os terraços do setor sul de Machu Picchu poderiam ter algo mais, como batatas e milho, além das lhamas. Os animais não serviam apenas como transporte e carne para os incas, afinal. Estrume de lhama era um dos segredos para cultivar milho nas elevadas altitudes dos Andes.
O mel siciliano que encantava o poeta Virgílio conquista turistas do século 21 e é produzido pelos insetos que ajudam a manter o equilíbrio ecológico no parque, o que por sua vez é importante na economia local. Em se tratando daquilo que a terra dá, gregos, sicilianos, incas e peruanos já sabiam muito bem que está tudo interligado.
Mais informações em: https://www.parcovalledeitempli.it/en/
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