Na Inglaterra, maridos vendiam esposas por cerveja até o século 20
Bebidas alcoólicas já funcionaram como moeda em diversas ocasiões. Cachaça no tráfico de escravos no Atlântico Sul, rum no Atlântico Norte e uísque na expansão do oeste americano são exemplos históricos. Mas nem é preciso ir tão longe. Na Angola dos anos 1980, em meio à guerra civil, era possível ir às compras com latas de Heineken ou Beck's.
Na Inglaterra, nos séculos 18 e 19, esposas eram leiloadas em mercados públicos e bares. Os valores eram, em geral, pagos em álcool. Gim, entre as décadas de 1790 e 1830, e ponche, na virada do século 19, foram populares. Há menções também a conhaque, uísque e sidra. Mas a moeda mais comum era cerveja.
Feito o acordo, as partes envolvidas — inclusive a que era o objeto do assunto, a mulher — celebravam o negócio com brindes. "Qual era o propósito do drinque pós-venda? A pista reside em frases como 'umedecer a barganha' ou 'molhar o negócio'", escreveu o autor americano Samuel Pyeatt Menefee em "Wives for Sale" ("Esposas à Venda", sem edição no Brasil). Isso ajuda a explicar que toda a prática era algo meio ritualística.
Lei das ruas
Primeiro, as vendas ou leilões aconteciam em locais públicos. Os críticos da prática diziam que isso desumanizava ainda mais a mulher, tratada como gado. De fato. Mas a ideia era que os homens envolvidos queriam público para testemunhar que agiam de boa-fé. Os valores negociados eram irrisórios mesmo para a época (há relatos de cadáveres vendidos a faculdades que custavam bem mais).
O livro "A Sussex Miscellany" ("Miscelânea de Sussex", sem edição no Brasil), de Sophie Collins, traz exemplos que aconteceram nessa região do sudeste da Inglaterra. Em 1898, um homem vendeu sua esposa no Shoulder of Mutton and Cucumber, pub que funcionou até 2007 em Yapton, por 1,1 litro de cerveja e oito xelins e seis pence (o equivalente hoje a cerca de R$ 300). No fim do século 18, uma venda em Brighton rolou por oito potes de cerveja e sete xelins (R$ 225). Na mesma época, em Ninfield, um homem trocou sua esposa na pousada da vila por meio litro de gim. Depois, mudou de ideia e a comprou de volta.
Segundo os estudiosos que pesquisaram a prática, isso indica que, diferentemente dos exemplos citados no primeiro parágrafo, aqui o álcool não era tanto uma moeda, cujo uso se propaga por causa de um contexto de falta de unidade monetária, facilidade de transações ou caos econômico. As cervejas serviam mais para selar o pacto. Era uma formalidade, não um investimento. Uma desculpa para beber.
Por fim, o mais importante. Muitas vezes, a mulher bebia junto. Por mais bizarro e sexista que isso seja aos olhos do século 21 (ou até do 20), elas tinham certa autonomia no assunto e, na maioria das vezes, nos casos estudados, estavam de acordo com o negócio. Isso porque em um mundo sem leis que as protegessem, as vendas por álcool funcionavam como o único divórcio disponível.
Casamentos vêm e vão perante a lei há bastante tempo. A Lei das Doze Tábuas já citava a separação no início da República Romana, há mais de 2,5 mil anos. Os Manuscritos de Timbuktu falam de leis sobre casamento e divórcio no Império do Mali, no século 13.
Mas, quase sempre, o foco é o direito do homem. "O próprio ser, ou a existência legal da mulher, é suspenso durante o casamento, ou pelo menos consolidado e incorporado ao de seu marido", escreveu o juiz inglês William Blackstone em 1753. Legalmente, mulheres eram uma propriedade.
Em 1857, o parlamento britânico criou uma lei que permitia o divórcio em algumas circunstâncias, como infidelidade comprovada. Antes disso, era preciso fazer uma petição ao governo e à Igreja, uma dor de cabeça do cão. Por isso, pessoas de classe baixa e média optavam pela separação informal. Cada um ia para um canto, de preferência com o ex-marido pagando uma pensão, porque senão a mulher morreria na miséria.
A nova lei ajudou, mas ainda assim era caro demais bancar um divórcio. Por isso, casais infelizes optavam pela venda por bebidas, que, na verdade, era mais um acordo de separação. Em geral, o homem que vendia era o marido traído e o que comprava era o amante. Faziam o acordo em público para que a comunidade testemunhasse. Assim, a mulher estava desimpedida para viver com o novo marido.
Em vez de gastar até 60 libras em um divórcio legal (quase quatro vezes o salário anual de uma babá na época), o cidadão resolvia tudo no bar, não gastava e ainda faturava umas bebidas. Era bom para todas as partes, o chifre doía menos e a mulher podia ser feliz.
Trabalhadores urbanos e rurais, transportadores de gado, ferreiros, limpadores de chaminés, pedreiros e cavalheiros selavam o "negócio" com um aperto de mão e um pint de cerveja, "para molhar a foice e brindar o sucesso da colheita", escreveu Menefee.
Em tais rituais, a conexão das bebidas com uma mudança de estado e, especialmente, com um contrato é enfatizada."
Mas havia problemas. Para começo de conversa, era tudo ilegal. A prática era considerada crime, pois era vista como uma conspiração para adultério (nada a ver com direitos da mulher, é claro). Houve casos de acordos desfeitos pela justiça, em que ex-esposas precisaram voltar para suas antigas casas.
Eventualmente, a venda de esposas ocorria também nas ex-colônias inglesas. Em 16 de dezembro de 1882, o "New York Times" falou de um fazendeiro chamado Alfred Jenkins, do condado de Stokes, em Nova York, que vendeu a esposa a seu vizinho, Noah Glidewell, por US$ 500.
"Jenkins, em uma conversa, disse que queria se mudar e não poderia levar a mulher. Glidewell disse que estava cansado de viver sozinho e gostaria de comprá-la se Jenkins estivesse disposto a isso. Ela se expressa perfeitamente feliz e contente com seu novo esposo e novo lar", relatou o jornal americano.
Por volta de 1905, a prática inglesa virou mais um capítulo encerrado na longa história de opressão às mulheres. Mas muita água precisou rolar ao longo do século. No Reino Unido, maridos tinham o direito de estuprar suas esposas até 1991. Pubs podiam se recusar a atender mulheres com base apenas em seu gênero até 1982.
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