No Dia das Mães, minha tradição é receita de uma avó que não sabia cozinhar
Nem avó, nem mãe, nem filha: essa não é a história de uma família que domina as panelas e os fogões. Comer e beber bem são bons lemas que compartilho com a minha mãe, Mônica, mas não há como negar que da geração anterior, vó Sandra, herdamos mesmo é uma falta de jeito suprema para a cozinha.
Sendo assim, que receita de família teria eu, que passo boa parte do dia lendo sobre gastronomia e planejando o menu da semana (boa parte delivery, é verdade), a revelar para os leitores em pleno Dia das Mães?
Dos cadernos de receita, de caligrafia impecável e bastante amarelados com o tempo, tenho nosso quitute-sucesso, que sai poucas vezes no ano (confesso: por pura preguiça). Porém, quando sai, são fornadas e fornadas da maior lembrança afetiva de uma avó que sequer conheci - ela morreu 16 anos antes de eu nascer.
Com vocês, o amado cigarrinho de frios:
Poucos ingredientes, zero malabarismos e completo deleite, garanto.
Não vou negar que é uma iguaria cheia de más notícias para nós, povo que não arrasa no fogão.
Para a aflição dos preguiçosos, é uma massa para sovar com a alma para ficar boa. Para tristeza dos ansiosos, ela descansa por uma hora. Para chateação dos anti-MasterChef, precisa cortar a massa quadradinho por quadradinho, rechear e enrolar um a um.
Superou esse spoiler? Siga em frente e aproveite a melhor parte: a versatilidade de recheios. Não é chegado em presunto? Pelos testes das maiores especialistas e fãs do petisco, ele vai bem recheado com mortadela, peito de peru, salame e queijo provolone.
Para quem não curte um forno, chegar ao final e provar o resultado é uma vitória digna de brinde - e como vai bem num happy hour caseirinho.
Na produção da receita para este Dia das Mães, rolou até milagre: o último quadradinho de massa coincidiu com o último pedaço de queijo parmesão. Alguém lá em cima realmente protege os cozinheiros amadores.
Haja amor
O bendito cigarrinho não tem origem conhecida, nem autor revelado. Segundo a minha mãe, alguém fez em um aniversário, minha avó copiou e a tradição perdurou.
Muitos anos depois, numa fase muito estranha da minha adolescência em que eu vivia para fazer tortas, bolos e pães, resgatei a iguaria num agrado para a minha mãe.
O período passou, mas a larica jamais e vez ou outra o cigarrinho entra em linha de produção para dona Mônica, colegas gestantes que ficaram com desejo do salgado só de ouvir a receita (história real) e um namorado que já virou fã desse raro cometa chamado "eu na cozinha".
Ou seja, um prato que demonstra que, para sujar a cozinha de farinha, haja amor.
Manjar da paz
O caderno cheio de recortes de boas maneiras para "môças", como a grafia da época, e várias receitas revelam uma jovem mineira — Miss Lavras! — prontinha para casar. Conheceu o piloto de avião Oswaldo, casou e teve uma filha. Tudo isso nos anos 50 e com Copacabana como vista - poucos meses, é verdade. Mas estava aí um casal bossa-nova, de fato.
Agora Simon, não tardou em revelar que não era a tal esposa de avental que a época pedia. Professora de inglês e piano, minha avó só ia para a cozinha em dois momentos: para os cigarrinhos de presunto...
...e para o manjar de coco, realizado todas as vezes que discutia com Dindinho (meu avô) e queria amolecer o sisudo formigão. "Ah, Ai, Dindi/ Se soubesses o bem que eu te quero/ O mundo seria, Dindi/Tudo, Dindi, lindo, Dindi. Canção de Tom Jobim com letras de Aloysio de Oliveira". Um casal bossa-nova, como disse.
Um Dia das Mães sem margarina
Folheando os cadernos de receitas da avó Sandra, não são muitas as que me arriscaria a reproduzir. Mas essas páginas foram parte do moodboard (palavra bonita para um "apanhado de referências") para essa seção Receita de Família, quando o Nossa nem era nascido.
Hoje, os cigarrinhos saíram em travessas tortas, com nada de técnica. Porém, que carinho maior podemos dar em mais um Dia das Mães na pandemia que um petisco bem caseiro, feito a quatro mãos (né, mãe!) harmonizado com uma boa cervejinha (não ia deixar de citar meu blog Siga o Copo) feito todinho para contar essa história que nada tem de família "margarina".
Como minha avó bem sabe e poderia cantar no canto da cozinha, "é melhor ser alegre que ser triste". Comida boa tem esses efeitos. Feliz Dia das Mães para aquelas que não sabem cozinhar. E para os que sabem. Das panelas à boca, comida boa é puro afeto.
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