Conheça Nelsa Trombino, 82 anos, a "dona do tacho" ícone da cozinha mineira
A vida de Nelsa Trombino, dedicada a enaltecer a cozinha mineira, virou documentário. "A Dona do Tacho", dirigido por Marcelo Wanderley, está com a pré-estreia, online e gratuita, marcada para domingo (16), às 18h.
Parte do Matula Film Festival, a exibição mostra como a cozinheira filha de italianos tomou para si a missão de levantar a bandeira das tradições de Minas Gerais no Xapuri, restaurante aberto em 1987 na Pampulha (Belo Horizonte), e em eventos Brasil afora.
O símbolo de resistência de sua luta é o tacho de cobre, que dá nome à obra e cujo uso na produção de doces típicos foi contestado pela Anvisa. Aos 82 anos, ela conversou com Nossa e contou que ainda se lembra da briga que comprou:
Falei que era um absurdo. O tacho tem uma sustentação incrível para ir mexendo de longe, com a colher de pau grande. Assim, doces como goiabada não espirram em você. É da tradição".
Apesar da fala tão própria, Nelsa não nasceu no estado que tem, segundo ela mesma, a melhor comida do Brasil.
Não se nasce mineiro, torna-se mineiro
Nelsa é de Cubatão, cidade da região metropolitana da Baixada Santista onde seus pais se instalaram ao sair da Itália. Ainda pequena, sua função era ajudar no cultivo de banana junto dos irmãos, todos homens e mais velhos.
Quando não estava na plantação, a caçula subia num banquinho para alcançar o fogão. Ao lado da mãe, ela aprendeu tim-tim por tim-tim da culinária italiana, ali adaptada com ingredientes da Serra do Mar. "Minha avó era uma exímia cozinheira", diz Flávio, filho de Nelsa que hoje comanda o Xapuri.
De acordo com ele, a beleza da mãe chamava a atenção. Não à toa, ela ganhou um concurso de miss na cidade e foi escolhida para presentear Getúlio Vargas com flores nas duas visitas que o então presidente fez à refinaria da Petrobrás.
Foi por causa desse encontro que Nelsa conheceu o ex-marido, Fábio Gomes. Ele trabalhou na construção da indústria e foi o responsável por levá-la à terra que, sem saber, era dela por alma.
Minas gerais: quem te conhece não esquece jamais
Na fazenda em Lagoa da Prata, no interior do estado, Nelsa foi apresentada pela sogra ao porco na lata, ao frango com quiabo e à doçaria de compota feita no tacho.
"Ela me fazia trabalhar demais. Eu ficava com sangue nas mãos. Levantava de madrugada para fazer queijos e doces para ela presentear a família e os amigos. Ficava triste, mas, hoje em dia, tiro o chapéu."
Sem o que ela me ensinou, não teria condição de fazer o que fiz."
Na roça, Nelsa e o marido tiveram três filhos. Com o crescimento das crianças, a família se mudou para Belo Horizonte a fim de ter uma vida mais urbana. Enquanto moravam em outro bairro da cidade, contruiam uma casa na Pampulha. Flávio conta:
"Para não parar a obra aos fins de semana, meu pai fez um acordo com os trabalhadores de que minha mãe cozinharia para eles. Fizeram um fogão a lenha e, como ela já tinha fama de boa cozinheira, alguns amigos da nossa família começaram a ir também".
A casa ficou pronta, mas o hábito não morreu. Pelo contrário, cresceu. Nelsa, que à época trabalhava numa academia, relembra:
"Eu estava com o dinheiro da herança da minha mãe e minha filha Fabiana falou: "mãe, eu acho você muito burra. Por que você não faz qualquer biboca e começa a cobrar o almoço?" A ideia dela foi fantástica".
De "atrás da moita" a Xapuri
Um dia antes de abrir as portas ao público, o restaurante familiar recebeu uma visita inesperada. Um jornalista que pedia informação na rua foi convidado a entrar para comer pão de queijo.
Saiu de lá encantado e publicou no jornal: "atrás da moita, onde não se peca". No texto, o profissional descreveu a experiência positiva que teve ao ser recebido pelos Trombinos, mas não deu endereço.
As pessoas começaram a buscar o lugar como "atrás da moita". Feliz com a repercussão, mas insatisfeita com como a casa ficou conhecida, Nelsa logo colocou um papel na frente: "Xapuri". E assim o negócio ganhou nome.
Com o tempo, o salão foi crescendo e a moita, baixando. "O boca a boca foi muito forte. Os turistas começaram a nos procurar", conta Flávio.
Nelsa afirma: "No começo, foi um pouco difícil. Mas o meu amor era tão forte, tão grande, que acabou dando certo"
Amor, técnica e prêmios
Ao longo de 34 anos, Nelsa enfrentou dificuldades como a separação do marido e a quase falência do restaurante. Ao contador que sugeriu que a cozinheira fechasse a casa e reabrisse com outro nome, ela disse: "nunca". E com direito a dedo indicador perto do nariz.
Forte e batalhadora, ela se manteve fiel à comida sem pressa. Panela de pressão e qualquer preparo pronto passa longe do Xapuri — nada de pular etapas.
Segundo Nelsa, o segredo do frango com quiabo, por exemplo, está em primeiro "dar uma fritada boa" e, depois, hidratar a receita de pouco em pouco com o caldo da própria carne.
Com tantos pratos de longo preparo no cardápio, o trabalho é contínuo. Flávio fala que o fogão a lenha nunca se apagou. "À noite ele também fica aceso para apurar os fundos e os caldos. O nosso vigia vai alimentando o fogo com pauzinho de lenha".
Nelsa dá sua opinião:
"Para vencer no trabalho, o primeiro requisito é amor. Depois, é a técnica, que, pra mim, significa o prazer de saber fazer. Gostava de perguntar aos clientes: está boa a comidinha?".
Foi com esse cuidado que o Xapuri ganhou o prêmio de Restaurante do Ano pelo Guia Quatro Rodas, em 1996, e figurou nas mais importantes publicações de gastronomia do país.
Nelsa, por sua vez, foi aos EUA, à China, à Alemanha, à Itália e a Portugal falar sobre a cultura que ela adotou.
Isso tudo não é pelo dinheiro, não. É uma satisfação para o meu coração. Fico feliz quando dão valor à comida regional. Eu fiz porque quis e nunca aceitei abrir unidades em outros lugares. Costumava dizer que Nelsa só tem uma".
Passando o tacho
Há três anos, Nelsa não está mais na cozinha do Xapuri por problemas de saúde. Como mora ao lado, não deixa de provar nem de palpitar no que o seu sucessor faz. "Minha cabeça ainda está boa. E meu paladar também".
Flávio, que voltou para o negócio da família em 2012, escuta as opiniões da mãe com atenção. "A expectativa da sucessão é sempre negativa. Poder me consultar com ela é muito importante. Se ela não estivesse lúcida, seria, no mínimo, muito mais difícil".
Enquanto ele se aprofunda na cultura mineira à frente do negócio e com o projeto "Minas de cabo a rabo", que faz a documentação geográfia dos costumes alimentares da região, ela almeja o dia que voltará a encontrar os clientes.
Flávio revela: "Um dia contei para ela que digo a eles que ela se aposentou. Ela não gostou. Botou o dedo na minha cara e falou: "diga que eu estou doente". É porque, se estivesse boa, com certeza estaria lá".
Nelsa, que sempre cozinhou no fogão a lenha de frente para os fregueses, confia que a fase, a uma casa de distância, vai passar:
Meu médico está jurando de pé junto que vou de novo ao Xapuri para falar com os meus clientes. Não estou conseguindo andar, nem tenho voz adequeada, mas tenho fé que isso vai acontecer.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.