Pioneiros do lúpulo: os desbravadores da cerveja artesanal no Brasil
"Vou te levar num bar em que a cerveja é feita lá mesmo". O convite, ainda que vindo de um amigo de referências (herdeiro de um grupo hoteleiro), soou meio estranho — eu tinha uma pálida ideia do que ele estava falando.
Qual não foi minha surpresa ao chegar a um endereço na Rua da Consolação, em São Paulo, e reconhecer a fachada da Woodstock, nascedouro de várias bandas de rock em meus anos teen. Todo mudado, o interior agora abrigava traquitanas metalizadas que eu nunca vira antes. E era dali, daquela engenhoca, que saia a cerveja. Boa cerveja, por sinal. Meu pecado original foi uma Weizen.
Cria do mestre-cervejeiro catarinense Evandro Zanini, o extinto Brew Pub (era esse o nome) integra a seletíssima lista de pioneiros quase quixotescos a quem toda reverência é pouca ante à oferta cervejeira da qual desfrutamos hoje. Hats off, guys.
"O Brew Pub abriu as portas em março de 1995, com a novidade de produzir chope bem à vista do consumidor. Funcionamos muito bem durante sete anos. Quando tiramos os equipamentos, era para montar outra cervejaria, no Parque Novo Mundo. Mas, infelizmente, não deu certo", diz Zanini. Com a brassagem nas veias, atualmente ele responde pelos rótulos da Cervejaria Campos do Jordão, entre outros projetos Brasil afora.
Conjunções "astrais"
Várias iniciativas similares aconteciam separadamente quase ao mesmo tempo. Tudo indica que o marco zero dos brew pubs no Brasil tenha sido o projeto megalomaníaco de um alemão residente em Curitiba. O nome: Bavarium Park, cria do mestre-cervejeiro bávaro Arthur Lampelzammer.
Cervejaria para milhares de pessoas, de enorme popularidade, à época (1987), na cidade. "Cerveja boa é para se beber em copo de cristal", ensinava o proprietário. Que rapidinho mudou de ideia, após a clientela surrupiar-lhe dois mil canecos de chope só nos primeiros dias de funcionamento.
Também em 1987, o hoje bar cult Frangó, na paulistana Freguesia do Ó, fazia jus ao nome: seu forte mesmo eram as aves grelhadas — o trivial cervejeiro era mero acessório para a espera do freguês.
Em meio ao antagonismo Brahma versus Antarctica imperando na praça, o empresário e cervejeiro-raiz Cássio Piccolo relembra que "no meio dessa briga, ter que negociar absurdas quantidades de refrigerantes com as duas partes era um entrave". Decidido, criou uma válvula de escape, trazendo, ele mesmo, cervejas diferentes para o comércio da família.
"Ia com o meu carro para a região serrana do Rio e lotava de caixas de Therezópolis e Bohemia, que ainda não existiam em São Paulo. Era um chamariz para os clientes enquanto esperavam seu frango assado", recorda o "Decano", como é conhecido. Através de um amigo, surgiram rótulos ainda mais inusitados: Xingu, do Paraná, Cerpa, do Pará, as gaúchas Polar e Serramalte e até uma surpreendente Antarctica Porter (então consumida como "preta").
Tudo começou a mudar quando o irmão, Wagner, habituê de Los Angeles, começou a trazer-lhe latas "diferenciadas". A abertura às importações do governo Collor (1990-1992) coincidiu com o início de sua saga em busca de know-how cervejeiro onde quer que ele estivesse, o que incluiu grandes festivais de Europa e EUA.
Eram tempos sem internet ou Facebook, "olho no olho e copo na mão, muita quilometragem etílica rodada", brinca. Ao investir pra valer em um conceito ainda sem mercado, o rapaz da Freguesia foi fundamental para forjar o próprio mercado: o tempo tornou o Frangó a máxima expressão de coxinhas inigualáveis e cartas de cervejas que influenciariam gerações.
É legal ver hoje a forma como o mercado explodiu. Ter parte nessa paternidade me deixa feliz. O 'eu' não existe, conhecimento tem que ser compartilhado", avalia Cássio.
"No início era tudo mato"
Fã de Kaiser Bock ("era o extremo, na época"), o empresário-cervejeiro Gilberto "Giba" Tarantino conheceu a expressão "drink local" através dos rótulos da premiada Sierra Nevada ao morar na Califórnia.
Anos depois, tentando diversificar o negócio de trading da família, foi abordado por um cliente querendo importar malte e lúpulos. E teve o clic definidor. "Comecei a ler tudo sobre cerveja e a frequentar grandes eventos como o Great American Beer Festival", diz.
A milhagem cervejeira rendeu-lhe a confiança das marcas ianques e avalizou a chegada de contêineres de grifes como Anderson Valley e Flying Dog, entre outras. À medida que o portfólio encorpava, crescia também a ousadia: Giba foi pioneiro na importação das italianas Baladin e Del Ducato.
Antes de lançar sua própria cervejaria, a Tarantino, em 2018 — que surfava bem até antes da pandemia —, o empresário cravou ao menos dois cases antológicos: os rótulos dinamarqueses da Mikkeler e, em outro golaço, os da BrewDog, em parceria de quase uma década com a marca escocesa que rendeu até sociedade no cultuado bar da cervejaria, na Pauliceia.
Abrindo a porteira
"Em 1996, quando começamos, ainda não havia a figura jurídica de uma fábrica que vende a própria cerveja no copo no mesmo espaço", observa Marcelo Carneiro, fundador da ribeirão-pretana Cervejaria Colorado. "Tive que configurar tudo na intuição. E fora dos grandes centros urbanos".
"Era mais paixão que razão. Quem veio primeiro, sofreu muito. Suportei prejuízo muitos anos, até virar parte de algo muito especial, um movimento enorme. Então, creio que tive meus acertos", brinca.
Um deles, o nome da cervejaria. "Por várias razões, a cerveja ia se chamar Califórnia. Eu estudei na Califórnia, comprei meus equipamentos lá. E havia o apelido da cidade. Mas aí descobri um 'risca-faca' no subúrbio com esse nome. E já que tinha que mudar, criei toda uma mitologia em torno do nome Colorado".
Outro acerto: passar a cerveja para barris. "Esse foi um passo muito importante, fomos dos primeiros a adotá-lo", conta. Já a terceira e igualmente importante decisão veio através de bate-bolas com o amigo Randy Mosher, lendário mestre-cervejeiro americano: usar ingredientes brasileiros.
Prestes a começar a engarrafar, pensei: não vou mais copiar. Vou fazer cerveja com características locais, inspirada na nossa cultura. Comecei a usar rapadura, mel, café, frutas. E só então passei a batizar as cervejas".
A Pilsen (com mandioca) Cauim, por exemplo, herdou o nome de um antigo cinema de Ribeirão Preto. E Mosher acabou responsável pelo lúdico logotipo do ursinho que identifica a marca. O resto é história.
O maior brewpub do mundo
Trazer a cerveja no nome parece carma traçado. Na prática, não é assim. Pegue-se o exemplo do empresário e cervejeiro gaúcho Eduardo "Dado" Bier. "O sobrenome era sempre motivo de piadas, diziam que eu tinha que fazer cerveja", lembra.
O mais insistente era seu tio Jorge, que queria porque queria que Dado abrisse uma cervejaria. "Até ai, eu achava que era brincadeira. Mas quando anunciei que ia casar, ele sugeriu pagar nossa lua de mel na Alemanha, para que eu começasse a estudar o assunto. E eu topei", relembra, bem-humorado.
O tour, que começou pela lendária Universidade de Munique, estendeu-se a outros berços cervejeiros — Irlanda, Inglaterra, República Tcheca e, mais tarde, EUA. "Peguei a renascença da craft beer. Era cerveja pra todo lado, muito diferente daqui". Aí já não tinha mais volta: nascia a Dado Bier, a cervejaria.
A primeira unidade abriu em 1995 em Porto Alegre. No ano seguinte foi a vez de São Paulo, no Itaim Bibi. Ambas, casas enormes, de inúmeras torneiras, para até cinco mil pessoas.
Naquele momento a Dado Bier era o maior brew pub do mundo. De cara, produzíamos e vendíamos 100 mil litros por mês".
O megassucesso gerou inclusive uma filial carioca, na Barra da Tijuca. E assim foi, Eduardo afirma, até que mudanças legislativas e de alíquota minaram o negócio — atualmente, com uma nova fábrica e a inauguração de um food hall porto-alegrense no final de 2020, a empresa passa a atuar em São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná.
Na sala de aula
Na lista de precursores cabe ainda quem começou na cerveja por mero acaso, para deixar um legado didático. Caso de Alfredo Ferreira, atualmente sócio e professor do Instituto da Cerveja Brasil, ao lado da esposa e beer sommelière (a primeira do país) Kathia Zanatta e de um time docente de ponta.
Após cursar Química na Unicamp, acabou como trainee na fábrica da Schincariol, em Itu (SP). "No começo, trabalhei no desenvolvimento dos não alcoólicos", conta. "Depois, me enviaram para morar e estudar em Munique, como preparo para assumir a cervejaria".
Já como mestre-cervejeiro, o currículo expressivo pavimentaria, a seguir, sua entrada na operação da Heineken no Brasil, o que não é pouca coisa. "Mas então, o mercado estava crescendo e optei por empreender no projeto do Instituto da Cerveja, especialmente na parte de tecnologia", afirma.
Milhares de alunos formados depois, Ferreira faz um balanço. "Hoje, dá muito orgulho ver o grande número de pessoas atuando no mercado que passaram pela escola, alguns com bastante destaque".
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