Como os barris de madeira criaram a forma como bebemos, do vinho à cachaça
Júlio César incendiava cidades gaulesas com catapultas que mandavam pelos ares barris cheios de alcatrão em chamas. Para o bem da humanidade, transformar barris em armas incendiárias não foi o uso mais comum dado a essa tecnologia que os romanos aprenderam com os povos dominados. O barril pode ter sido útil na guerra, mas foi no comércio que ele brilhou.
Há registros de egípcios e babilônios usando receptáculos de madeira para estocar e medir trigo, uvas e outros produtos. Por volta do século 3 a.C., os romanos perceberam que os barris feitos pelos gauleses (povo celta que habitava a atual França) tinham a forma e a resistência ideais para preservar e transportar produtos. Facilmente empurrados nas rampas de navios, aninhados uns nos outros em porões, eles providenciavam estabilidade e segurança.
Os barris revolucionaram o comércio pelos séculos seguintes, até que deixaram de ser vistos nas docas. Pallets e contêineres os substituíram com vantagens no comércio global, mas foram necessários mais de dois milênios para o barril ser aposentado.
"Antes do alumínio e do plástico, os barris de madeira forneciam um recipiente impermeável. Antes do estanho e do aço, os barris ofereciam proteção contra ratos", escreveu o tanoeiro (fabricante de tonéis) Henry H. Work no livro "Wood, Whiskey and Wine".
O barril pode ter virado peça de museu no comércio global (ele segue usado como unidade de medida na produção e transporte de petróleo), mas continua útil, e até mais importante do que antes, no setor que encantou Roma lá atrás.
O estalo teria vindo quando os romanos, ao construírem um posto avançado nas Ilhas Britânicas, perceberam que o vinho que eles transportavam da França estava melhor do que antes. A novidade correu o império, as ânforas ficaram para trás, e o barril nunca mais se desvencilhou das bebidas alcoólicas. Na verdade, algumas só existem por causa dele.
Reino do carvalho
Há séculos, a madeira que se destacou para a produção de bebidas é a do carvalho. Mais especificamente, o carvalho europeu, nome comum dado a duas espécies, Quercus petraea e Quercus Robur (também conhecido como carvalho-vermelho). Mais tarde, nos Estados Unidos, o carvalho branco (Quercus alba) entrou em cena.
Há uma série de fatores que explicam a predileção. A madeira é resistente e flexível para moldar o barril, e pouco porosa — o que permite o desenvolvimento das bebidas. O carvalho é considerado puro e não afeta negativamente o sabor das bebidas. Além disso, seus compostos químicos fazem a diferença: a tosta da madeira libera compostos como a vanilina, que dá o aroma de baunilha.
A madeira está presente nos processos de fermentação e envelhecimento de diversas bebidas. O tamanho dos tonéis, o tempo de maturação e a tosta da madeira, entre outros fatores, interferem no produto final.
Além disso, cada tipo de madeira trabalha de um jeito. A petraea fornece mais compostos aromáticos e taninos mais elegantes. A robur oferece corpo e estrutura. Com isso, o carvalho vem acompanhando os vinicultores desde os tempos em que Plínio, o Velho ranqueava os melhores vinhos de Roma, há 2 mil anos.
"12 anos" e além
Como os barris eram o meio de transporte e estocagem por excelência no comércio, inevitavelmente seu uso se espalhou por outras bebidas, inclusive a cerveja.
A madeira era usada não só na fermentação, como também no envelhecimento. As lambics, família de cervejas mais antiga do mundo, usam barris até hoje. Nas últimas décadas, com a popularização das chamadas cervejas artesanais, alguns produtores têm investido nas chamadas barrel aged, estilo em que se envelhece a cerveja em barris que podem ter sido usados anteriormente em uísque ou vinho.
Por falar em uísque, os destilados deram aos barris um papel ainda mais central na produção de bebidas. Tradicionalmente, os fabricantes de conhaque usam o carvalho de duas florestas no centro da França, Tronçais e Limousin. Na segunda metade do século 20, "muitos destiladores, ansiosos para minimizar seus gastos voltaram às fontes alternativas usadas por seus predecessores", explica Nicholas Faith no livro "Cognac". Eles usam carvalho da Rússia, dos países bálticos, da Itália ou dos EUA.
Mas nenhuma das alternativas forneceu a combinação única de qualidades físicas e químicas necessárias para transformar o brandy cru da região de Cognac em conhaque", garante.
A madeira é tão importante para o conhaque que lei francesa os classifica conforme seu envelhecimento. "VS" para dois anos, "VSOP" para quatro e "XO" para no mínimo seis anos. Sempre em carvalho.
Na Escócia, antes de o uísque se tornar praticamente sinônimo do país, a bebida nacional era o claret, como os britânicos chamavam os vinhos de Bordeaux. Outra bebida popular na Grã-Bretanha era o xerez, vinho fortificado com aguardente que envelhece em barris de carvalho e é feito exclusivamente na região de Jerez de la Frontera, na Espanha.
No século 19, produtores de uísque investiam tanto em barricas de xerez (ou "sherry", em inglês) que os tanoeiros do Reino Unido começaram a fazer "tratamento vínico" nos barris, segundo um artigo da revista especializada "Whisky Magazine", a fim de replicar no país as características dos tonéis espanhóis.
A Guerra Civil Espanhola e as guerras mundiais minaram esse comércio, mas não a demanda por "sherry casks", como são chamados os uísques envelhecidos em antigos barris de xerez. Hoje há fabricantes na Espanha especializados em fazer barris "de xerez" que são, na verdade, para uísque. Ou seja, o xerez interage com a madeira, deixa sua marca, mas o objetivo principal é envelhecer scotch.
Mas é um nicho. Apenas cerca de 10% da produção atual de uísque usa o carvalho de xerez no envelhecimento, segundo o site especializado "Distiller.com". O que tomou seu lugar, no século 20, foi outro carvalho, mais conhecido: o de bourbon. Isso porque a lei americana determina que os uísques produzidos no país sejam armazenados em barris novos. Isso contribuiu um bocado para o carvalho branco dos EUA se espalhar pelo mundo na forma de tonel.
Na Escócia, Canadá e Irlanda, os uísques envelhecem em antigos barris de bourbon. Xerez e outros vinhos fortificados, como porto e madeira, também aparecem, mas são minoria, como vimos. No Japão, além dos carvalhos americano e europeus, os barris podem ser de mizunara, duas espécies de carvalho asiáticas.
No México, barris de carvalho branco usados em uísques americanos servem para descansar tequila do tipo reposado. Esses tonéis, em seguida, armazenam a tequila envelhecida (añejo). No Caribe, o rum escuro e o dourado também envelhecem em processos semelhantes.
É praticamente um padrão para esses destilados o envelhecimento em barris de carvalho usados em bourbon ou, em menor escala, em xerez. Há uma ou outra ousadia, como castanheiro para uísque, mas o carvalho impera.
As cores da cachaça
Já no Brasil, a diversidade governa. Barris de carvalho, americano ou europeu, usados anteriormente para uísque, brandy ou xerez, também são comuns no envelhecimento de cachaça. Mas amburana, bálsamo e jequitibá são mais usadas, explica Edson Martins, proprietário da Havana, tanoeira de Taiobeiras (MG) que produz dornas e barris para grandes fabricantes de cachaça e outras bebidas.
Jaqueira, putumuju, castanheira, ipê, cumaru, eucalipto. Cada madeira fornece, em maior e menor grau, características de dulçor e especiarias, além de notas frutadas e florais em intensidades diferentes.
A flora brasileira tem espécies com grande diversidade em cores, sabores e aromas, que também estão conquistando a cerveja e o gim", diz Martins.
Toda essa variedade faz alguns produtores e críticos desmerecerem o carvalho na cachaça, que seria só mais uma importação desnecessária. Mas foi justamente a profusão de velhos barris no Brasil e a sua popularidade em outras bebidas que impulsionou a criatividade e a busca por outras madeiras.
Uma das versões mais recorrentes diz que a cachaça envelhecida nasceu mais ou menos como o vinho descansado dos romanos. No Ciclo do Ouro e na interiorização do Brasil, no século 18, o transporte em barris por vales e montanhas adentro mostrou que a madeira mudava o gosto, o cheiro e a cor da cachaça.
A grande questão, hoje, é que algumas dessas espécies correm risco alto de extinção, especialmente amburana e jequitibá-rosa. Fabricantes estão se mexendo para salvá-las, garante Martins. "Estamos trabalhando com 12 diferentes espécies da Amazônia sem valor comercial e que prometem substituir as espécies que são usadas para movelaria e exportação", diz Martins.
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