Mezcal não é tequila: os mitos e verdades sobre a "maldita" bebida mexicana
Parente menos famosa da tequila, o mezcal é uma bebida ancestral. Há dez anos ele figura em importadoras e na carta de restaurantes e bares no Brasil, e seu consumo vem subindo nos últimos anos. Mas ainda existe uma série de lendas e boatos a seu respeito.
Trata-se de um destilado de agave, gênero de plantas muito comum no centro do México. Das mais de 130 espécies do vegetal, várias são usadas há séculos para gerar alimento, remédio, bebida, fibras para tecelagem e material de construção, entre outros usos. Mas aqui a gente fala de bebida: a seiva fermentada é o pulque, bebida importante desde o tempo dos astecas.
O agave é tão importante nas antigas civilizações mexicanas que ele tinha até uma deusa asteca em sua homenagem, Mayahuel.
"Representada como uma jovem com múltiplos seios de onde sai o aguamiel, Mayahuel alimenta Centzon Totochtin, ou os Quatrocentos Coelhos, deuses da embriaguez e do pulque", descreve a mexicana Cecilia Rios Murrieta, divulgadora da cultura do agave, no livro "Tequila Made me Do It" ("Tequila Me Fez Fazer Isso", sem edição no Brasil).
Os colonizadores espanhóis introduziram a técnica da destilação. Aí o agave alcançou novos ares. Os mexicanos criaram o mezcal e, depois, seu produto de exportação mais emblemático, a tequila.
Mezcal não é tequila
A tequila é feita de um tipo específico de agave, ou maguey (como é chamado no México): agave-azul, espécie encontrada na região da cidade de Tequila. Ou seja, mezcal não é tequila, mas tequila é um tipo de mezcal. Aliás, em espanhol, ambas as palavras são substantivos masculinos, por isso há quem prefira dizer, em português, "o tequila". Mas o uso no feminino já está mais que arraigado e dicionarizado.
Com a popularização da tequila, primeiro como bebida de identidade nacional, na independência (1821) e na Revolução Mexicana (1910), depois na conquista do mundo por meio de tragos empolgados com limão e sal em festas, o mezcal ficou cada vez mais em segundo plano. A tequila ganhou denominação de origem em 1977 e é, geral, uma bebida industrializada, produzida em larga escala, no estado de Jalisco.
Já o mezcal é feito majoritariamente no estado de Oaxaca, mas também pode vir de outras unidades da federação. Além disso, leva diversas espécies de maguey — a mais comum é a piteira-do-caribe (Agave augustifolia), que eles chamam de espadín. Por poder misturar vários agaves e ser feito em seis estados, é uma bebida em que conceitos como blend e terroir têm mais força do que na tequila.
Além disso, mezcal é fabricado em escala muito menor, artesanal. Por pouco não desapareceu (mais sobre isso adiante). Em muitas destilarias, a elaboração segue os mesmos passos desde o século 17. O produtor corta o chamado coração do maguey e o cozinha em fornos debaixo da terra. Em seguida vêm a moagem, a fermentação e a destilação.
Que nome é esse?
Ele deriva de uma antiga denominação do pulque, mexcalmetl. Isso não só evidencia o peso da tradição da bebida como esclarece que mezcal não tem nada a ver com mescalina, lembra o historiador Henrique Carneiro na "Pequena Enciclopédia das Drogas e Bebidas". Para esclarecer, a mescalina é um alucinógeno extraído do cacto peiote.
Mas a confusão, além de outras informações falsas difundidas ao longo do tempo, colaborou para uma fama duradoura do mezcal. A de bebida maldita.
Maldita e alucinógena... só que não
Até a década de 1980, no México, muitas regiões proibiam a bebida. Proibição de entorpecente tende a levar a pirataria e clandestinidade, o que leva a produtos de pior qualidade. Por isso, como forma de conferir autenticidade, alguns palenques (destilarias) passaram a depositar na garrafa um verme característico do maguey. É uma lagarta de borboleta (Hipopta agavis) que só existe em certos tipos de agave.
Há quem afirme que a larva serve para indicar que a graduação alcoólica (que pode ir a 55%) está no ponto, pois o álcool conservaria o bichinho. Outros dizem que ela altera de alguma forma o sabor. Mas nem todo mezcal vem com um verme na garrafa.
A fama de bebida perigosa e prejudicial à saúde se alastrou no período em que o governo passou a cobrar impostos desses produtores sem oferecer nenhuma regulamentação ou apoio. O mezcal caiu na clandestinidade e passou a ser cada vez mais visto como bebida de trabalhadores rurais simples. Com produtos adulterados à venda, era difícil convencer alguém de que não se tratava de veneno engarrafado.
Em 1994, na esteira do sucesso internacional da tequila, o mezcal conquistou a indicação geográfica reconhecida internacionalmente. Algo que a cachaça ainda labuta para vencer: apesar de o governo federal ter regulamentado o nosso destilado em 2003, o mercado internacional ignorou isso por muito tempo. Só em 2019 a União Europeia incluiu a cachaça com o selo de indicação de procedência (IP).
Mas a trajetória de bebida condenada e marginalizada que passou a ser valorizada dentro do país e, até certo ponto, no exterior é semelhante aos dois destilados. O mezcal só está há mais tempo trilhando esse caminho, especialmente desde 1997, com o surgimento do Conselho Regulador do Mezcal.
Bebida de luxo
Em 2014, um mezcal negro, obtido por um processo químico para se assemelhar à lama de Oaxaca, engarrafado em um recipiente de cristal e banhado em platina, foi vendido por 55 mil euros (cerca de R$ 165 mil na conversão da época). Bebidas do tipo são um ponto fora da curva, um arroubo de luxo, ostentação e marketing que pouco ou nada têm a ver com a cultura que originalmente criou aquilo. Mas são um sinal de que algo mudou. Uma cachaça de mais de R$ 200 mil seria impensável nos anos 1990, mas não nos 2010.
É a mesma história com o mezcal. Se hoje há unidades superpremium à venda é porque há uma oferta respeitável em bares disputados na Europa e nos EUA (onde drinques como Oaxaca Old Fashioned estão fazendo sucesso), porque existem produtores no México com condições de fazer uma bebida de qualidade. O que não é fácil.
O agave não é uma planta que amadurece cedo, e a produção do mezcal leva pelo menos oito anos. Um litro de bebida demanda até 30 quilos da planta, 7 quilos de lenha e 20 litros de água.
Até 1994, o agave podia ser vendido a menos de um centavo o quilo. Agricultores e destiladores, no desespero, faziam péssimos acordos com atravessadores que compravam toda sua produção e, muitas vezes, a adulteravam para terem lucros maiores. Com a regulamentação do mercado, os produtores ganharam condições de prosperar, mas muitos ficaram para trás, sem condições de atender normas sanitárias, pagar impostos e registrar marcas.
Segundo uma reportagem do site espanhol "El País", a produção aumentou 700% em dez anos e o preço da matéria-prima é 75 vezes maior que nos anos 1990. Os problemas agora são outros, como roubo e comércio clandestino de plantas. Além disso, a carga tributária deveria ser revisada, segundo os produtores, porque eles pagam os mesmos impostos que fabricantes de bebidas industrializadas e mais fáceis de produzir, como vodca e rum.
São novos desafios e problemas que surgiram com uma nova realidade. Sete de cada dez garrafas são exportadas, a imensa maioria para os Estados Unidos. Aqui, as semelhanças com a cachaça desaparecem. Mezcal é essencialmente uma bebida artesanal. A produção total é de cerca de 7 milhões de litros, enquanto o Brasil fabrica 1,2 bilhão de litros de cachaça ao ano e exporta por volta de 1% disso. Ou seja, o conto de fadas desse paralelo se limita à cachaça artesanal, de alambique.
Para esses novos dilemas, surgem novas soluções. Como apostar no turismo.
Beba na origem
Santiago Matatlán, cidade com cerca de 10 mil habitantes, é a autointitulada capital mundial do mezcal. O governo de Oaxaca investiu em uma rota do mezcal (em espanhol), que começa na Cidade de Oaxaca e passa por Santiago e outros municípios produtores. Além de conhecerem de perto a cultura do mezcal, os visitantes podem explorar essa região do sul do México e seus sítios arqueológicos, feiras de artesanato e festivais de rua grandiosos, como o do Dia dos Mortos.
Se depender da popularidade da bebida no grande vizinho do norte, o turismo de Oaxaca vai prosperar. As vendas de mezcal nos EUA subiram 17,7% em 2020, segundo o Conselho de Bebidas Destiladas dos EUA. De acordo com o Conselho de Turismo do México, Oaxaca é um destino-chave no crescimento de 93% de visitantes estrangeiros que viajaram ao país entre 2010 e 2019 e o colocaram entre os 10 mais visitados do mundo.
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