Aguardente do Maranhão, tiquira ganha adeptos e será Patrimônio Imaterial
Familiares, amigos, vizinhos... muita gente questionou se a advogada e designer carioca Margot Stinglwagner estaria ficando maluca ao saber que ela deixava para trás o Rio e uma bem sucedida trajetória profissional para fabricar no Maranhão uma bebida semidesconhecida. Pior ainda, não na capital, São Luís, mas nos confins do interior.
"Foi um projeto que me encantou desde o início", ela recorda, sobre o hercúleo desafio. Hoje à frente da Guaaja Tiquira, a empresária é uma das responsáveis por projetar ao mundo a aguardente à base de mandioca originalmente maranhense que, ainda em 2021, será laureada Patrimônio Imaterial do estado, como já o são folguedos como o Tambor de Crioula e o Bumba Meu Boi.
Bebida 100% "raiz"
"A tiquira é a bebida ancestral do Brasil", exalta Margot. Pura verdade. Muito antes de a cachaça ser "inventada", quando a esquadra de Cabral aqui atracou, não é improvável que indígenas já consumissem a beberagem denominada tykir, "bebida que goteja", um termo guarani.
Sua matriz é a mandioca, aquela conhecida como mandioca "brava", a mesma do tucupi paraense. "Os maranhenses souberam preservar a diversidade de influências que sua rica história recebeu", já ensinava mestre Ricardo Maranhão (1946-2018), pesquisador e historiador com dezenas de livros publicados (e que apesar do nome, era paulista de Piracicaba).
O Maranhão preserva uma rica herança que a chegada do branco modificou, mas deixou como notável prazer: a aguardente de mandioca, a tiquira, que existe, mas não está na pauta dos produtos bem valorizados pelo comércio. Ela permanece escondida dentro da riqueza culinária do estado", escreveu.
Este estigma — a invisibilidade — foi um dos tabus que Margot propôs-se a quebrar. Mas ainda que um novo tempo aparentemente se anuncie, a produção de tiquira continua sendo quase 100% artesanal, interior maranhense afora: a mandioca "brava" é descascada, lavada, ralada e prensada, de tal forma que, nesse processo, elimine-se o seu ácido cianídrico, componente bastante tóxico.
Depois, a massa resultante é desfeita à mão, e espalhada sobre uma chapa quente para formar beijus. Resfriados, estes são expostos ao ar, para a proliferação espontânea de fungos. A seguir, a massa é retrabalhada até compor um mosto, cuja fermentação alcoólica será destilada em alambiques de barro ou de cobre.
A maior distinção de expressiva parte dessa tiquira dos redutos — sua sedutora cor violeta — também é obtida naturalmente, através da adição de folhas de tangerina ao processo.
"Melhor que uísque"
Nesses bolsões, a tiquira significa um meio de vida para não poucos (como se autodenominam) agricultores. Uma tradição que se perpetua há gerações, de pai para filho.
"Aqui ela é feita há mais de 100 anos através de conhecimento empírico e trabalhando a mandioca de forma artesanal", afirma João Paulo Rodrigues da Silva, diretor da cooperativa Guaribas, de Urbano Santos, a 260 quilômetros de São Luís, que congrega produtores rurais da bebida — atualmente, mais de uma centena.
"Em anos de tempo bom, cada produtor consegue até 50 latas. Chamamos de lata, mas é um bojão de 20 litros", conta. Como não há registro, a produção é comercializada e escoa apenas na região.
As garrafas de 700 ml da Guaribas saem por R$ 35 — sim, a tiquira, mesmo a rústica, é mais cara que cachaça.
Para muita gente a tiquira é uma bebida periférica, mas para nós ela é melhor que uísque", orgulha-se Rodrigues.
"Estamos em fase final de elaboração do dossiê de registro, para então submetê-lo à avaliação de um comitê. A aprovação deve acontecer nos próximos meses", afirma Neto de Azile, diretor da Secretaria de Estado da Cultura, sobre o processo de registro da tiquira como Patrimônio Cultural Imaterial maranhense.
O pedido foi protocolado em 2018 pelo Sindicato das Indústrias de Bebidas do Maranhão. Para Azile, a tiquira compõe o conjunto de iguarias da culinária do estado, e se individualiza pelo processo produtivo baseado em tradições orais dos mais velhos e em saberes tradicionais das comunidades onde é produzida.
"Além de referência da identidade e da cultura desses locais, a tiquira é a base econômica de muitas comunidades rurais do estado, além de um ativo turístico indiscutível".
Mestre da tiquira
No caso de Margot Stinglwagner, sua aproximação com a tiquira — e vice-versa — foi acidental. "Anos atrás, por conta de um projeto na área de turismo que não deu certo, eu já tinha uma casa alugada no município de Santo Amaro", relembra.
"A moça que arrumava minha casa me levou a uma festa de Boi, muito tradicional no Maranhão. De quando em quando, o dono do estabelecimento servia o copo das pessoas com um líquido azul, de uma garrafa pet que tinha em mãos. Perguntei o que era e disseram: tiquira. Nunca tinha ouvido falar. Mas gostei".
Ao pesquisar, fascinou-se pela origem silvícola e pela produção rudimentar, "roots", da bebida. Tanto que vislumbrou uma oportunidade. Isso em 2012.
Fabricar bebidas já constava de seu DNA: os avós tinham cervejaria na Alemanha, e o pai, Max Stinglwagner, engenheiro e mestre-cervejeiro, veio ao Brasil para exercer a profissão na gigante Brahma. "Decidi mudar a história dessa bebida muito popular e consumida no interior e praticamente desprezada em São Luís. Mas em nenhum momento pensei em fazer isso no Rio ou em outro lugar. Seria injusto e antiético retirar a tiquira de seu habitat cultural", diz.
O projeto de uma tiquira premium contemplou mantê-la em seu berço, no caso, a pequena Santo Amaro do Maranhão (16 mil habitantes, a 200 quilômetros da capital), valorizando a agricultura familiar e gerando empregos diretos e indiretos entre pequenos produtores de mandioca, além da contratação de mais colaboradores.
Margot então faz curso de mestre alambiqueira (a única mulher na turma) e monta, do zero, uma destilaria. Nasce, assim, a Guaaja Tiquira — o termo é a contração de nomes de etnias indígenas maranhenses. O produto final, entretanto, só surge em 2015, após muita pesquisa de campo e tentativa-e-erro.
Isso porque a produção de tiquira é mais complexa, por exemplo, que a da cachaça — na tiquira, é preciso cumprir etapas anteriores à destilação, como transformar o amido em açúcar, para só então destilar. Houve ainda a necessária adaptação às boas práticas na fabricação, algo distante, na produção informal. "Cumpri todas as normas técnicas e só lancei de posse de todas as licenças necessárias", pontua Margot.
O atual portfolio da Guaaja compreende três versões: a prata, uma repousada em amburana e outra em carvalho. O resultado é um produto que, mesmo com 40º de teor alcoólico, é leve.
Para honrar a tradição da cor violácea, há dois anos surgiu a Tiquero, bebida mista colorizada por corante comestível. "O apelo da cor da tiquira artesanal é bacana, mas eu não podia porque os parâmetros da instrução normativa não permitem", justifica Margot.
Aos bons drinques
"A tiquira é uma bebida que foge ao lugar comum", avaliza o bartender Léo Peralta, embaixador da marca (e autor do drinque abaixo), que ressalta a crescente demanda na coquetelaria de bares e hotéis de Rio e São Paulo. "As pessoas têm apreciado bastante. Por conta da mandioca, ela tem uma picância e notas amendoadas bem distintas, características únicas que outros destilados não têm".
Peralta inclusive incluiu-a na carta de drinques do lendário Pérgula, bar do Copacabana Palace, quando lá trabalhou. O grande desafio, ele afirma, continua a ser diferenciar tiquira de cachaça. "Mesmo entre profissionais de bar, eu tenho que ser didático e ensinar", afirma. Por isso, segue à risca a cartilha da Guaaja de evitar comparações com a "caninha". Ou seja, "caipitiquira", na prática, não existe.
A tiquira tem personalidade própria. É potente e, ao mesmo tempo, tem leveza. Além de uma riqueza histórica única".
Aprenda como fazer um drinque com essa bebida:
Reviver
Ingredientes:
- 25ml de Guaaja Tiquira amburana
- 25ml de vermute tinto
- 15ml de limoncello
- Ginger ale para completar
Guarnição: ramo de hortelã, twist de siciliano e grapefruit desidratada
Preparo
Em um copo long drink, adicionar os ingredientes, completando com a Ginger ale.
Decorar com a hortelã, o twist de limão siciliano e a grapefruit.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.