Conheça Hans Staden, o alemão que quase foi comido por índios brasileiros
O Brasil que Hans Staden encontrou em suas duas viagens por aqui, de longe, se parecia com o deslumbramento na carta do português Pero Vaz de Caminha sobre o achamento daquela nova terra, em 1500.
No lugar de portos seguros e índios hospitaleiros e inocentes, o jovem navegante alemão encontraria os Tupinambá, conhecidos pelos rituais em que os capturados eram comidos (mais pela "hostilidade e muito ódio" do que para saciar a fome).
Após naufrágios em Santa Catarina e Itanhaém (SP), em 1550, Staden era feito refém desses índios canibais na região de Ubatuba, no litoral norte paulista. Um ano antes, ele até tentou ir para a Índia, mas acabou parando no Brasil pela primeira vez, onde passou pelo Cabo de Santo Agostinho, desembarcou prisioneiros em Olinda e atacou um navio francês na Paraíba.
"[Hans Staden] tornou-se, literalmente, testemunha ocular da história — e justo no momento em que o Brasil colônia ainda se retorcia nas dores do parto", analisa o jornalista Eduardo Bueno na introdução de "Duas viagens ao Brasil" (editora L&PM).
Best-seller desde que foi publicado na Europa, em 1557, o livro é considerado os primeiros registros sobre o Brasil, cujo detalhamento dos longos e ameaçadores nove meses de cárcere parecem saga de cinema.
De fato, a história do alemão ganhou a tela grande com "Hans Staden", em 1999, versão em tupi do diretor Luiz Alberto Pereira, gravada em uma aldeia cenográfica em Ubatuba.
Assim como lembra Bueno, o livro inspiraria ainda o modernista Oswald de Andrade em seu "Movimento Antropofágico", o quadro "Abaporu" de Tarsila do Amaral e até versões infantis assinadas por Monteiro Lobato.
Na década de 40, o brasileiro modernista Cândido Portinari também retratou a história do explorador alemão na série "Portinari Devora Hans Staden" com 26 desenhos feitos com nanquim bico de pena.
Alemão pé frio
Depois de seis meses de viagem em um mar "grande e muito extenso", Hans Staden visitou destinos bem conhecidos dos turistas brasileiros.
A bordo de uma frota espanhola que pretendia ocupar novas terras no Rio da Prata, o alemão passou por Superagui (PR) e pela ilha de Santa Catarina, "onde o grande navio afundou" e a tripulação ficou perdida, antes de seguir em uma pequena embarcação até São Vicente, na atual Região Metropolitana da Baixada Santista.
"Ficamos dois anos na selva e sobrepujamos muitos perigos. Passamos muita fome, tivemos de comer lagartos e ratos de campo", confessou Hans Staden.
Próximo dali, outra tempestade atingiria o barco e "no primeiro choque o navio se desfez", obrigando aqueles homens a nadarem até a terra firme, na então aldeia portuguesa de Itanhaém, também no litoral paulista.
Ali receberam abrigo e Hans Staden ganhou trabalho no forte de Bertioga, construção dos portugueses, aliados dos Tupiniquins, contra investidas dos inimigos Tupinambá que vinham do norte.
Em plena primeira metade do século 16, como se rascunhasse um futuro guia de viagens do litoral paulista, Hans Staden descrevia em detalhes destinos como Ubatuba, Alcatrazes, arquipélago próximo a São Sebastião, e a Ilha de Santo Amaro, onde fica o atual Guarujá.
Os poucos conhecimentos que o alemão tinha no manejo de canhões só não o impediriam de ser capturado pelos Tupinambá. Em busca de alimento, foi cercado pelos "selvagens", que lhe atiraram flechas, deram golpes de lança e o deixaram nu.
"Mordiam-se nos braços para fazer-me entender de forma ameaçadora que iriam me comer", explica o alemão que, apesar de dizer que era amigo dos franceses, aliados dos Tupinambá, fora confundido com um inimigo português.
A festa preparada pelas mulheres da aldeia de Ubatuba, onde Hans Staden seria comido, era só uma questão de tempo e, nos noves meses seguintes, uma ameaça quase que diária.
"Lá vem a nossa comida pulando"
Toda vez que o alemão questionava se não seria logo devorado, alguém dizia "ainda não".
Entoaram canções para mostrar suas intenções de devorá-lo, arrancaram seus cabelos e sobrancelhas, beberam cauim — bebida alcoólica feita de milho usada nos rituais antropofágicos — e dançaram ao seu redor.
Na aldeia vizinha do chefe Cunhambebe, suas pernas foram amarradas e Hans Staden teve que entrar aos pulos sob os gritos de "lá vem a nossa comida pulando", como eram tratados os inimigos escravizados.
Nos meses seguintes, Tupiniquins, portugueses e franceses até tentaram, sem sucesso, resgatar o prisioneiro, mas o excesso de fé dos Tupinambá e as mentiras criadas por Hans Staden davam sobrevida e adiavam seu fim.
Cada problema na aldeia, como a morte de índios por doenças trazidas pelos europeus ou as chuvas devastadoras que duravam dias, era atribuído à ira do deus católico pelo sequestro do alemão. Presenteado ao chefe de outra aldeia, seria resgatado por um navio francês sem nenhuma resistência dos "selvagens".
"No ano da graça de 1554, no último dia de outubro, içamos as velas no porto do Rio de Janeiro e partimos para a França", ditou, aliviado, Hans Staden a seu amigo Dryander, a quem pediu que revisasse, corrigisse e, "onde fosse necessário", melhorasse o trabalho.
Hans Staden contribuiria também para a divulgação das primeiras imagens do Brasil, que no livro "Duas viagens ao Brasil" aparecem em forma de xilogravuras "a partir de desenhos feitos diretamente pelo jovem Hans ou, quando menos, sob sua orientação".
E se esta história soar exagerada ou improvável, o próprio alemão sugere: "Se houver um jovem homem para quem minha descrição e essas testemunhas não bastarem, então que empreenda ele mesmo com a ajuda de Deus esta viagem e as suas dúvidas se desvanecerão. Amém".
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