Destruição de 120 kg de queijo artesanal reacende polêmica da legalização
Nesta semana, o cenário gastronômico paulista — e nacional — se mobilizou numa revolta on-line contra uma ação da Defesa Agropecuária do Estado de São Paulo. A partir de uma denúncia anônima, realizada no escritório de Pindamonhangaba em 31 de maio, representantes do órgão destruíram 120 quilos de queijo curado, 45 litros de iogurte e 9 quilos de requeijão da Lano-Alto, em São Luiz do Paraitinga, na Serra do Mar.
Embora a empresa não possua registro de inspeção e venda os produtos derivados de leite pela internet, a situação foi lamentada por chefs renomados, como Alex Atala, Manu Buffara, Onildo Rocha e o casal Janaína e Jefferson Rueda. A publicação feita pela fazenda no Instagram também furou a bolha da cozinha. A cantora Fafá de Belém se manifestou: "É inadmissível".
"Confesso que não esperava que tomaria essa proporção", diz o proprietário da Lano-Alto, Peèle Lemos. A startup Comida Invisível, cujo foco é propor soluções para o combate ao desperdício de alimento, compartilhou o post e escreveu:
"Por medo, adotamos uma posição higienista e passamos a impor uma burocracia sem fim [...]. Muitas vezes a truculência toma o lugar da razoabilidade e litros de leite, quilos de queijo, ofício humano são jogados em sacos com creolina para tornar lixo o que é alimento".
Entenda o caso
De acordo com a Coordenadoria de Defesa Agropecuária (CDA), uma primeira visita foi realizada na Lano-Alto no dia 10 de junho para atestar a veracidade da denúncia.
"Foi lavrado auto de infração pela fabricação de produtos de origem animal em estabelecimento não registrado em serviço de inspeção. Inicialmente, a produção foi apreendida, pois o estabelecimento informou estar viabilizando o processo de registro municipal", disse a coordenadoria em nota.
A queijaria foi lacrada com os produtos dentro e, de acordo com Péele, foi dado um prazo de 15 dias para a emissão do SIM, Selo de Inspeção Municipal que garante a qualidade dos produtos originados de animais.
O advogado da Lano-Alto e doutor no tema pela USP, Marco Aurélio Braga, protocolou em 26 de junho uma defesa na CDA. O documento, que até o momento desta reportagem não foi respondido, pedia para converter a lacração em advertência e para suspender qualquer nova vistoria até que a prefeitura se posicionasse sobre a viabilização do SIM.
Como São Luiz do Paraitinga ainda não disponibiliza a emissão do selo, todos os pequenos produtores de derivados de origem animal do local ficam impossibilitados de buscar a legalização pela instância municipal.
"Há uns 2 anos tentamos forçar ativamente a elaboração de um regramento junto com a prefeitura, mas sem sucesso. Isso está além da nossa alçada", queixa-se Péele.
Município sem selo municipal
Além de protocolar a defesa, Péele e Marco Aurélio reuniram um ofício de vinte negócios da região, entre produtores e mercearias, interessados no SIM e levaram ao secretário de Agricultura e Meio Ambiente de São Luiz do Paraitinga, Rodolfo Guimarães Machado.
"Estamos unindo esforços junto ao SEBRAE e à secretaria do estado para regulamentar a lei do município. Jogar creolina no alimento que a pessoa produz é sacanagem. O produtor está numa fase transitória", disse ele.
Rodolfo conta que enfrenta dificuldades que justificam o atraso por atender a demanda dos queijeiros. O que a lei prevê é que a construção do decreto leve em consideração produtores de outros itens derivados de animais além do queijo.
O Péele sofreu uma denúncia anônima e infelizmente foi prejudicado. Mas não posso fazer um regulamento baseado só nele. Tem também produtores de ovos e derivados, de mel e cera de abelha e de carnes e derivados."
De acordo com o secretário, o pedido feito pelo município na câmara para a aprovação de uma nova lei já foi sancionado. Entretanto, ele diz que a pandemia, que se iniciou na sequência, tornou mais complicada a reunião com o grupo de produtores e dificultou a ampliação da equipe de inspeção.
"Somos um município de 10.600 habitantes. Só tenho uma veterinária. Foi aberto um concurso para outra vaga, mas a lei federal complementar 173/2020 não autoriza a contratação para não gerar mais gastos na folha de pagamento durante a pandemia".
120 quilos de queijo no lixo
Em 1º de julho, a equipe técnica regional da CDA retornou ao local. A coordenadoria afirma que, decorrido o prazo dado para apresentação da regularização e verificado a ausência de regulamentação municipal para o assunto, foi realizada uma nova diligência a fim de promover a inutilização do material apreendido.
Péele conta como aconteceu: "quando eles chegaram, eu estava com o calhamaço de ofícios nas mãos. Achei que tinham acatado a defesa. Mas falaram que tinham ido para destruir os queijos. Tentei argumentar, tinha embasamentos, e liguei para o meu advogado".
Mas eles estavam intransigentes e sugeriram até entrar pela via criminal. Na minha frente, eles colocaram os queijos em sacos e jogaram creolina, um tipo de desinfetante industrial".
De acordo com Marco Aurélio, a ação foi desproporcional. "O Peèle nunca tinha sido fiscalizado anteriormente. Nesses casos, a legislação estabelece que a primeira penalidade seria a advertência. Isso não foi seguido".
Considerando que a Lano-Alto comercializa cerca de 300 pedaços de queijo de 200 gramas cada por mês, a perda de 120 quilos equivale a dois meses de vendas. Como a queijaria segue lacrada e está impedida de tirar o SIM, a previsão é de que os danos sejam ainda maiores.
"O prejuízo de Péele já foi feito. Mas os efeitos disso em outras situações são perversos. Estamos lidando com produtores, em geral, de baixa escolaridade. Na cabeça deles, eles fazem um produto ilegal"
Qual o efeito disso? O produto é vendido a um preço muito abaixo do que poderia e o produtor vive com medo. A legislação expulsa a pessoa que exerce a sua atividade".
Exigências vs. realidade
O que aconteceu com a Lano-Alto reacendeu um debate antigo. Para que os queijos sejam considerados legais, os produtores precisam estar registrados em algum órgão de inspeção.
O SIF, Serviço de Inspeção Federal responsável por assegurar a qualidade de produtos de origem animal comestíveis e não comestíveis, é destinado ao mercado interno e externo. Pelas normas rígidas, porém, cabe aos pequenos produtores recorrerem ao SIE, estadual, ou ao SIM, municipal.
Essa descentralização é vista como algo positivo por Marco Aurélio:
"Do mesmo jeito que a nossa biodiversidade é grande, a produção agrobrasileira é diversa. E existem uma série de benefícios — econômicos, sociais e culturais - a regulação adequada dessa diversidade de produtos".
Estados com maior tradição de queijo, como Minas Gerais, saíram na frente nos decretos, tornando a conquista do selo de inspeção mais viável. Com a instituição do Selo Arte, em 2018, os produtores registrados passaram ainda a comercializar o seu produto em território nacional.
O Serviço de Inspeção de São Paulo (SISP), porém, não é considerado amigável. Fontes do setor relatam que a proximidade do governo com a indústria dificulta a flexibilização para os pequenos.
"Em vez de aproveitar a descentralização para modernizar a produção agroartesanal, eles só repetiram um sistema de exclusão e revalidaram as práticas industriais e sanitaristas que existiam em 2001", alega o advogado.
Christophe, presidente da Associação Paulista do Queijo Artesanal (APQA), explica que o objetivo do selo de garantir a segurança alimentar é válido, mas que os meios são retrógrados.
"Não é porque você é pequeno que você pode fazer qualquer coisa. Todo mundo, inclusive o governo, concorda que essa lei está arcaica. Como a inspeção é focada na estrutura e não no produto, torna-se inviável cumprir tantas exigências produzindo um volume tão pequeno".
O francês, que está no Brasil desde 1998, sugere uma analogia: enquanto as indústrias são carros de fórmula 1, que correm a 300 quilômetros por hora e podem causar grandes acidentes caso errem, os pequenos produtores são charrete e, portanto, danos muito inferiores andando numa velocidade lenta.
"Não se pode aplicar as mesmas leis de trânsito. Faz sentido pedirem que a minha charrete tenha um freio ABS?", indaga ele, referindo-se à falta de sentido da restrição das normas.
O que está em jogo é o risco à saúde, mas existem formas mais avançadas de avaliar que um produto não é nocivo, como os testes de laboratório".
Péele e Marco Aurélio, por exemplo, pretendem mandar exemplares do queijo destruído para os exames.
A APQA espera que a repercussão do caso da Lano-Alto potencialize a voz dos produtores com a Secretaria de Agricultura e Abastecimento já que o debate que propõem novas formas de avaliação e o devido preparo dos fiscais de inspeção acontece desde 2017, quando a associação foi criada.
"Fizemos bons contatos. Mas muda governador, muda secretário. E às vezes muda secretário sem mudar governador. Você trabalha e não acontece. É muito desanimador".
Não podemos só replicar o que foi feito no passado, nem apenas aplicar o que está feito no resto do mundo sem pensar. Cabe a nós sermos inteligentes. Mas a atividade mais difícil do mundo é pensar".
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