Como é o espumante soviético, que Putin defende como o verdadeiro champanhe
Na semana passada, Vladimir Putin sancionou uma nova lei que chocou franceses e o mundo das bebidas em geral. Agora, na Rússia, o champanhe não é mais champanhe, mas apenas um espumante francês qualquer. Champanhe é somente aquele feito na Rússia. Uma notícia estranha e complicada, mas não tanto inusitada.
Primeiro, vamos aos elementos em jogo. Champanhe é um vinho espumante que segue uma série de regras de produção, da codificação das variedades de uvas usadas à poda, da fermentação ao grau de pressão aplicado nas garrafas. Mais importante, ele é produzido na região de Champagne, na França.
Mais importante ainda: outros países reconhecem isso. Praticamente o mundo todo, incluindo o Brasil. Caso contrário, essa denominação teria pouco valor, e os produtores seriam apenas um bando de fanáticos afirmando coisas para as quais ninguém daria bola. "Isto aqui é o verdadeiro champanhe" seria equivalente a falar "Sim, a Terra é um disco, eu vi."
Mas não é o caso. O champanhe é um dos exemplos mais emblemáticos de como o uso comercial de um nome, amplamente reconhecido, pode influenciar o mercado e fomentar culturas locais.
Em 1891, em um grande encontro internacional, surgiram as primeiras regras modernas para proteção de marcas e produtos feitos em determinadas regiões. No ano seguinte, o champanhe ganhou status de AOC ("denominação de origem controlada", na sigla em francês) reconhecido por outros países. Foi o primeiro produto francês a ter essa garantia.
Nem todo o mundo concordou. Os Estados Unidos por pouco não assinaram, mas preferiram deixar o assunto de lado. "Se o Senado tivesse ratificado antes, poderíamos estar hoje livres de muita bebida falsa", escreveu o jornalista gastronômico americano Larry Olmsted no livro "Real Food/Fake Food" (sem edição brasileira).
Mas a maior parte da comunidade internacional, a começar por aqueles que formariam a União Europeia, aceitou os termos. Hoje, 121 países reconhecem o uso comercial do nome "champanhe".
Apaixonados por borbulhas
O segundo elemento é a Rússia. Desde o tempo dos czares, o país adquiriu um gosto empolgado pelas borbulhas. Até a Revolução de 1917, o império era o segundo maior mercado de champanhe do mundo. Produtores como Veuve Clicquot eram venerados na então capital, São Petersburgo, e a elite russa fazia questão de brindar com rótulos franceses em suas festas.
A indústria local também quis dar seus passos iniciais. No fim do século 19, o príncipe Leo Golitsyn teria sido o primeiro russo a se aventurar a fazer um espumante russo, na Crimeia.
Na década de 1920, com a formação da União Soviética, o governo encomendou a seus vinicultores que criassem um champanhe do povo, que fosse barato, acessível e rápido de se fazer.
A URSS, assim como os EUA, não reconheciam a exclusividade do nome "champanhe", e a produção de vinho estava bem longe de ser algo desconhecido no país. Pelo contrário, na Geórgia, uma das repúblicas que constituíam a URSS (e terra natal de Josef Stalin), há registros de vinhos feitos há milhares de anos.
Mais tarde, um discípulo de Golitsyn chamado Anton Frolov-Bagreyev criou um blend de uvas aligoté e chardonnay, maturado em tanques e sem a fermentação na garrafa, típica da bebida francesa. Lançado em 1936, foi a fórmula consagrada do sovetskoye shampanskoye, ou "champanhe soviético". Foco na eficiência, na produção em massa, e não tanto na qualidade. Stalin agora tinha o seu espumante do proletariado.
A década de 1930 testemunhou a primeira tentativa séria de criar uma cultura comercial genuinamente soviética para rivalizar com o Ocidente, explica o sociólogo finlandês Jukka Gronow no livro "Caviar with Champagne: Common Luxury and the Ideals of the Good Life in Stalin's Russia" ("Caviar com Champanhe: Luxo Comum e os Ideais da Boa Vida na Rússia de Stalin", sem edição brasileira). A ideia, segundo o autor, era fazer com que o trabalhador pudesse viver como os aristocratas.
Podia não ser o verdadeiro champanhe, mas acabou caindo nas graças do povo e passou a ser bebida típica de festas e celebrações, algo que se manteve depois da queda da União Soviética. Com o fim do socialismo, companhias privadas nas recém-independentes Rússia, Ucrânia, Belarus, Quirguistão e Moldávia mantiveram a produção de "champanhe soviético".
Em 2011, produtores russos concordaram em aposentar o nome. O intuito era começar a jogar nas regras internacionais do jogo, respeitar a denominação dos franceses e buscar, no futuro, denominações de origem controlada próprias, que protegessem regiões produtoras locais, segundo o site especializado "Decanter".
É um movimento comum. Os EUA aceitaram os termos em 2005 e, em contrapartida, os produtores de Champagne e do Porto passaram a defender as denominações de origem americanas, como o Vale de Napa, na Califórnia.
Orgulho russo revitalizado
Mas a situação política mudou muito na Rússia nesses dez anos. O nacionalismo, assim como em outros países, voltou com tudo.
Em 2014, a Rússia invadiu e tomou o controle da Crimeia, península que pertencia à Ucrânia e que, historicamente, é disputada entre os dois países. União Europeia e EUA impuseram sanções a Moscou, que reagiu banindo produtos importados desses lugares. Isso revitalizou o consumo de produtos locais, entre eles o shampanskoye.
Em 2016, o governo russo promoveu um festival em Balaclava, na Crimeia, que produz uma das marcas mais populares de espumante, o Zolotaya Balka. No mesmo ano, a Ucrânia sancionou uma lei de descomunização, que bane qualquer glorificação dos tempos da URSS. Assim, o "champanhe soviético" feito em Kiev ganhou um novo nome (que não muda tanto assim as coisas: agora ele se chama Sovietov).
Com a nova lei, os produtores de Champagne que quiserem vender suas garrafas em território russo terão que mudar o rótulo. Os franceses bufaram, é claro.
Disputas antigas
A batalha pelo uso comercial do nome "champanhe" já teve outros episódios pitorescos. Em 2004, após um acordo entre a Suíça e a União Europeia, a cidade de Champagne, no país alpino, deveria abdicar de usar seu próprio nome no rótulo dos produtos locais, a começar pelo vinho.
Revoltados, os comerciantes locais tentaram reverter a situação em uma votação popular, em 2008, pois a mudança havia causado danos previsíveis à economia da cidade (a venda de vinhos despencou de 110 mil para 32 mil garrafas por ano, segundo uma reportagem da época).
Champagne, ou Campania, é conhecida por esse nome desde o século 9, segundo o Dicionário Histórico da Suíça. É mais antiga até que a xará francesa: o condado de Champagne foi estabelecido em 1065.
Mas, apesar de os argumentos usados em disputas do tipo serem frequentemente culturais e históricos, trata-se de disputas econômicas. A Suíça se resignou, permitiu o dano a sua Champagne para que, assim, a antiga Swissair (antecessora da Swiss International Air Lines) pudesse operar em cidades da UE.
A Rússia, hoje, não está nem entre os dez maiores mercados de champanhe. Porém, a gigante Moët Hennessy, que teria suspendido as vendas para o país, aceitou adequar as garrafas à realidade imposta por Putin.
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