Nós, brasileiros, apreciamos doces bem doces. Não à toa Nutella e leite Ninho tornaram-se o casal mais melado e bem-sucedido dos tempos modernos.
A ideia de que "quanto mais açúcar, melhor" é antiga. Afinal, o paladar não passa impune pela história: nosso gosto foi colonizado pelos portugueses e tem como base a cultura da cana.
Rejeitar um docinho após o almoço é incomum, assim como ir visitar a avó e não ganhar nenhum bolinho. Mas no Japão, a história, os costumes e os sabores são outros.
Cesar Yukio, dono da Hanami Confeitaria e especializado na confeitaria yogashi, explica:
Lá, até hoje, é muito difícil utilizar açúcar em grande quantidade nos lares. Fazer doces não é rotina de maioria das famílias japonesas".
A confeiteira Vivianne Wakuda — que trabalhou na Osoumenya, doceria instalada no país há mais de 300 anos, e hoje faz doces por encomenda em São Paulo — confirma:
"Na minha família, comia doces em épocas comemorativas, mas não no dia a dia. Os asiáticos em geral não têm esse hábito. Quando fui ao Japão, percebi que os doces japoneses eram mais leves e menos doces, além de levarem muitas frutas. As sobremesas são sazonais e exploram o que há de melhor em cada época".
A teoria de Saiko Izawa, eleita a melhor confeiteira da América Latina em 2017 pelo ranking regional do 50 Best, é que talvez o baixo interesse pelo açúcar esteja relacionado ao fato do ingrediente ir na composição de molhos e conservas na cozinha quente asiática.
Raízes wagashi
Os doces tradicionais japoneses são chamados de wagashi. Cada província ou mesmo cidade no país asiático possui suas próprias receitas, que costumam utilizar ingredientes locais, como feijão azuki e mochi (massa de arroz glutinoso).
O preparo dessas sobremesas perpassa por rituais culturais como a cerimônia do chá, na qual os nerikiri, doces à base de feijão branco, são servidos.
Vivianne exemplifica:
Os doces wagashi usam materiais 'arcaicos'. Pedaços de madeira transformam o doce de feijão em flor. Já um fogareiro no chão esquenta carimbos de ferro que estampam os manjus [bolinho assado de feijão azuki]".
Dentro dessa confeitaria, os doces são categorizados pela presença de água. São três subdivisões:
- Namagashi (acima de 70% de umidade)
- Han-namagashi (entre 30% e 70% de umidade)
- Higashi (abaixo de 30% de umidade)
Cesar conta que o motivo da categorização está na validade, que interfere diretamente no consumo. "Os produtos com menos umidade acabam sendo mais para presentear e os que tem mais umidade são para consumir na hora, como sobremesa".
Preferências que se transformam
Os diferentes níveis de globalização vividos ao longo dos séculos impactaram na forma como os japoneses encaram a confeitaria.
No período das grandes navegações, no século 16, os portugueses apresentaram aos japoneses, principalmente de Nagasaki, a cultura do trigo. Dessa interação nasceu o bolo kasutera, cuja base lembra muito um pão de ló.
"Até então os japoneses não tinham a cultura do trigo. Além de ser um arquipélago e não possuir espaço para plantio desse tipo, o forte sempre foi o arroz, assim como na maior parte da Ásia", conta Vivi.
Já no início do século 20, muitos nipônicos foram estudar no exterior. Os que se afeiçoavam pela cozinha geralmente tinham a França como o destino de preferência.
Quando esses estudantes retornaram ao seu país de origem, levaram na bagagem novas técnicas e ingredientes. Começaram, então, a se arriscar na elaboração de sobremesas com traços ocidentais, a chamada confeitaria yogashi.
Para Saiko, a influência de fora foi intensificada no período pós-guerra:
A mudança de costume dessa época foi muito marcante. Comemorar o Natal e comprar um bolo para a família, mesmo sem ser cristãos, era um símbolo de ocidentalização nos lares".
Num mundo totalmente conectado pela internet, o intercâmbio de informações e gostos é constante. "Passamos a conhecer novos sabores e culturas mais facilmente e a disseminação de certos doces foi inevitável. Os japoneses no geral gostam muito de experimentar coisas novas, de comida a roupa", diz Saiko.
Como é um doce perfeito?
Semelhanças e diferenças
Embora tenham origem em tempos distintos, as confeitarias wagashi e yogashi convivem em perfeita harmonia. "Isso reflete muito a cultura Japonesa, que está sempre se aprimorando e trazendo a modernidade sem nunca esquecer suas tradições", atesta Vivi.
Enquanto os doces yogashi são consumidos mais no dia a dia e podem ser encontrados até em lojas de conveniência madrugada adentro, os preparos wagashi aparecem na mesa dos japoneses em ocasiões especiais.
Algumas receitas mais simples, porém, como o sembei (bolachinhas de arroz que podem ser adocicadas), são bem-vindas como acompanhamento de um chá da tarde.
A literatura local se dedica quase inteiramente ao wagashi. Com um manual de preparo rígido, os doces são limitados aos ingredientes típicos e às técnicas tradicionais.
Já a yogashi permite as mais variadas invenções. "Em algumas aulas que ministrei no Japão, fizemos brigadeiro de sudachi (um cítrico japonês que lembra limão-taiti), quindim de matchá (chá verde), bolo gelado de yuzu (fruta cítrica) e pão de mel com sichimi (mix de especiarias japonesas). Os japoneses adoraram essas novas possibilidades", relata Vivi.
Além de valorizarem os mesmos ingredientes, há aspectos que unem ambas as vertentes. A ideia é sempre utilizar o que há de mais fresco na wagashi foi absorvida pela yogashi. A leveza e o equilíbrio de açúcar são outros pontos em comum.
Obra de arte comestível
Independentemente do grau de ocidentalização de uma sobremesa, a apresentação é sempre o principal ponto a ser trabalhado nela. Saiko explica:
Nós, japoneses, temos o costume de levar os doces como lembranças ou pequeno presente. Apreciamos a delicadeza e a disciplina transmitidas pelo visual refinado".
Para Cesar, o motivo também tem a ver com o momento. "Quando se escolhe um doce, normalmente você já comeu algo salgado e está satisfeito, então o impacto visual é fundamental para a escolha da sobremesa".
O cuidado com o corte das frutas, o trabalho minucioso com bico de confeitar e as decorações de chocolate são comuns na finalização dos preparos. "Os japoneses consideram os doces uma obra de arte".
A dedicação com a aparência enche os olhos dos consumidores. Mais do que uma questão de marketing, é uma forma de demonstrar respeito ao ingrediente.
Vivi conta que um dos princípios aprendido em seu período no Japão foi a valorização dos alimentos, que começa com o trabalho dos pequenos produtores e é honrado nas mãos de confeiteiros que se preocupam em aproveitá-los na totalidade, sem desperdícios.
Aprendi a valorizar, a ser consciente e a respeitar a comida. O reflexo desse pensamento japonês fica nítido no resultado, que vai além da aparência".
Bê-a-bá wagashi
- Nerikiri: doces à base de feijão branco para acompanhar a cerimônia do chá
- Dorayaki: mini panquecas japonesas recheadas de doce de feijão azuki
- Mochi: bolinho de arroz glutinoso
- Anmitsu: sobremesa à base de kanten, gelatina de algas com frutas, mochi, azuki e calda de açúcar mascavo
- Yokan: doce de feijão azuki gelatinizado
- Manju: bolinho assado com recheio de feijão azuki
Bê-a-bá yogashi
- Ichigo shortcake: bolo japonês de morango com chantilly
- Choux cream: massa choux recheada de creme leve de baunilha
- Mille crepe: "bolo" feito de crepe com chantilly
- Purin: pudim japonês sem leite condensado
- Soufflé cheesecake: cheesecake leve e aerado
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