Pico da Neblina: como é realizar o sonho de estar no topo do Brasil
O nome do pico é autoexplicativo. E é grande a probabilidade de ter não mais do que um imenso tapete de nuvens sob os pés, cobrindo aquele mar de montanhas afiadas que rasgam o horizonte.
Não é à toa que a Yaripo, o nome Yanomami para o Pico da Neblina, significa "montanha do vento".
Mas isso é só o começo (ou fim, a depender de como termina a história).
A 2.995 metros de altitude, essa montanha no norte do Amazonas é o ponto mais alto do Brasil, onde a Amazônia das florestas abafadas dá lugar a árvores mais baixas, trilhas fechadas se abrem em cenários rochosos e as temperaturas chegam a 5 °C.
"Quem faz trilhas e montanhismo no Brasil sempre quis conquistar o Pico da Neblina. É o sonho de consumo de todo mundo", avalia o montanhista Maximo Kausch, 40, que esteve no local em uma expedição com a médica Karina Oliani e do fotógrafo Marcos Terra.
A pequena equipe saiu da capital amazonense em um avião até São Gabriel da Cachoeira, um dos extremos do país, embarcou em um helicóptero até a comunidade de Maturacá, "o último lugar onde se veem pessoas", navegou por cerca de duas horas e empreendeu uma caminhada de 4 dias até o pé do Pico da Neblina.
"Já escalei o K2, a montanha mais difícil do mundo, e duas vezes o Everest. Mas o pico do meu próprio país eu ainda não conhecia. Como montanhista, eu tinha esse sonho", confessa Karina, primeira sul-americana a se especializar em emergência e resgate em áreas remotas.
Mas o topo do Brasil não é feito só de neblina e sonhos. Para chegar lá em cima ainda tem muita lama para enfiar o pé.
Mente aberta e pés molhados
"É uma trilha muito técnica, em terreno irregular e escorregadio, sob vários tipos de chuvas, de chuviscos a águas torrenciais. Não é para qualquer pessoa", avisa Karina.
Com uma rotina de caminhada que varia de 9 a 11 horas diárias, a trilha é um permanente teste de resistência que inclui carregar cerca de 30 quilos nas costas, encarar temperaturas extremas, atolar até a cintura em areia movediça e estar, constantemente, molhado e com frio.
Isso porque ainda nem chegamos na parte da jararaca armada para dar o bote ou na constante possibilidade de dar de cara com alguns dos felinos encontrados na maior floresta tropical do mundo.
Precisa ir com a mente aberta porque a logística é complicada e o Neblina é uma montanha muito úmida. Chove quase o tempo todo e não dá para manter o pé seco em nenhum momento", descreve Maximo.
Para quem já encarou os picos mais altos do planeta, uma dezena deles só nas Cordilheiras dos Andes, os quase 3 mil metros do Neblina parecem fáceis. Mas, na Amazônia do Neblina, números são apenas mais um detalhe da viagem.
Kausch lembra que para atingir os 6.962 metros do Aconcágua, na Argentina, por exemplo, a subida começa apenas aos 6 mil metros, "são só mil metros de desnível". Já no Everest, na Ásia, a subida começa a 8 mil metros, uma diferença de "apenas" 800 metros até o topo do mundo". No Pico da Neblina são desafiadores três mil metros de diferença entre a base e o cume.
Outra característica da travessia é a mudança no cenário. A caminhada começa em uma floresta de fauna amazônica imponente até os mil metros de altitude, aproximadamente, passa por árvores de pequeno e médio portes, e finda, a partir dos 1.800 metros, em uma vegetação rasteira.
"Saímos do nível do mar com uma temperatura de 39 °C e chegamos a 2.920 metros com um frio de 5 °C. É uma experiência para lidar com extremos", conta Karina que, em suas mais de 20 vezes no Norte brasileiro, ainda não tinha provado a sensação de ver a Amazônia com talento para ser os Andes.
A trilha figura entre uma das mais cenográficas do país, assim como a exigente travessia da Serra Fina, entre Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, e a cenográfica Serra dos Órgãos, entre Teresópolis e Petrópolis, no Rio de Janeiro.
"[Na região do Neblina] são montanhas que intimidam por causa da altura. Eu não sabia que eram tão imponentes", descreve a médica.
E tudo isso só foi possível por conta da bandeira nacional.
Depois de anos tentando acompanhar as atividades do 5º Pelotão Especial de Fronteira, unidade militar do Exército Brasileiro responsável pela patrulha nos marcos fronteiriços, a equipe de montanhistas recebeu a notícia de que o mastro do Pico da Neblina havia caído e a bandeira do Brasil precisava ser reerguida.
Aquela seria a deixa para os três, com testes PCRs devidamente feitos, voarem até Manaus.
Éramos como irmãos muito unidos e deveríamos levar esse espírito para a vida. Em uma montanha normal, existe muita vezes uma competição entre os montanhistas", conta Karina.
Dessa vez, a competição só tinha um ganhador: a própria montanha.
Dormindo no topo do Brasil
Dizem que em cerca de 95% do tempo, o pico mais alto do Brasil se esconde sob neblina intensa.
Mas Karina Oliani, que já fez tirolesa sobre uma lava de vulcão e voou com uma mochila a jato decidiu ficar para ver com os próprios olhos.
"Chegamos no topo sob uma chuva torrencial e não dava para ver nada. Passamos o final do dia com 5 °C do lado de fora e tirando água da barraca com uma caneca", lembra.
Assim como Maximo também contou para a reportagem, a decisão de passar a noite ali foi tomada por uma "questão de imagem".
"Até chegarmos na base, no sexto dia da expedição, ainda não tínhamos bons registros da montanha. Como a tendência é de tempo limpo pela manhã, decidimos dormir no cume", descreve.
Mas nem precisou esperar tanto.
"Umas três horas depois da gente chegar, o Marcos [cinegrafista da expedição] disse 'saiam da barraca agora, vocês precisam ver isso'". Lá fora, o Brasil se exibia aos pés como 'uma planície com um mar de montanhas de onde emergiam picos afiados'", define Maximo.
"Achei aquilo impressionante. A gente tirava uma foto e um segundo depois estava mais bonito ainda. É muito legal que isso esteja no Brasil", conclui o montanhista, que ainda pôde ver o 31 de Março, a 600 metros dali. A 2.974 metros de altitude, essa montanha fica na fronteira com a Venezuela e é considerada a segunda mais alta do país.
Nessa região frequentada por índios ianomâmis, militares e pesquisadores, não é comum ter visitantes armando barracas ou estendendo redes para passar a noite, mas a pequena equipe entrou para a lista das poucas pessoas que tiveram a experiência de dormir no topo do Brasil.
Não é nem pelo titulo, mas pelo privilegio de poder ver o Neblina sem neblina e ter uma vista de 360°. A gente enxergava até o Rio Negro brilhando, a cem quilômetros dali", comemora Karina.
Turismo no Pico da Neblina
O empresário Magno Souza é bastante claro: "é uma das trilhas mais difíceis do Brasil, pois se trata de uma experiência pesada dentro de uma selva".
Souza é proprietário de uma das três únicas agências autorizadas a operar na reabertura do destino, de acordo com as normas estabelecidas pelo Plano de Visitação Yaripo, aprovado pelo ICMBio e pela Carta de Anuência da Fundação Nacional do Índio (Funai), em outubro de 2019.
Seu roteiro terá duração de duas semanas, incluindo deslocamentos aéreos, terrestres e fluviais.
Só no trecho entre São Gabriel da Cachoeira e a comunidade Yanomami de Maturacá são dois dias de deslocamentos terrestre e fluvial. De lá, a viagem inclui outros nove dias até o topo do Pico da Neblina.
Apesar de contar com todo apoio logístico, como transporte e alimentação, a travessia requer disposição para caminhar por terreno irregular e dormir todos as noites em redes em acampamentos improvisados.
"Dentro da mata, tem-se a impressão de que é fresco por conta das sombras, mas há muita umidade na floresta e isso vai drenando a pessoa", descreve o empresário.
Ao longo da caminhada, ele também destaca alguns acessos "mais complicados" em que é preciso fazer escaladas em rochas, embora já contem com pontos de apoio.
A natureza está ali para ser desfrutada por todos, de forma responsável e consciente. Mas, no caso do Neblina, não é fazer a mochilinha e ir pra lá", avisa Karina Oliani.
Startup indígena
Visitar o Neblina ainda é uma experiência para poucos, muitas vezes, uma exclusividade de pesquisadores que sobem com o apoio de militares do Exército.
Mas desde que foi fechado devido a conflitos entre locais e operadoras, em 2013, o turismo local ensaia seu retorno.
A última previsão de reabertura da visitação turística ao Pico da Neblina era em março de 2020, porém a data foi adiada devido ao início da pandemia de coronavírus. A reportagem tentou contato por diversos meios com o ICMBIO, autarquia do Ministério do Meio Ambiente que faz a gestão dos parques nacionais, mas não obteve nenhum retorno sobre novas datas.
O processo de reabertura durou cerca de cinco anos e envolveu o alinhamento da legislação entre o ICMBio e a Funai, mas sempre garantindo a autonomia dos indígenas, em uma ação inovadora que está dando origem à primeira startup de turismo ianomâmi.
O projeto deve favorecer mais de 800 indígenas de 10 comunidades da região, entre elas Maturacá e Cachoeirinha.
A demora para o início dos trabalhos se deve a dois fatores: o Pico da Neblina é uma unidade de conservação ambiental, neste caso um parque nacional, e também um território indígena Yanomami. Por isso, a responsabilidade da gestão do turismo ficou a cargo da Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA), que terá apoio dos órgãos públicos.
Mas, na prática, é a Yaripo que continua ditando as regras de acesso.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.