Atol das Rocas: o Brasil que você não vai conhecer - e isso é boa notícia
Primeira Reserva Biológica Marinha do Brasil, Atol das Rocas está a quase 150 quilômetros de Fernando de Noronha e, a depender do humor do mar, de 20 a 30 horas de barco de Natal.
Este é um frágil anel de recifes na boca de um vulcão submerso com uma lagoa interior que abriga apenas duas pequenas ilhas, as únicas terras firmes acima do nível do mar, e que não chega a 4 quilômetros de uma ponta à outra. Dos mais de 400 atóis no mundo, Rocas é o único em todo o Atlântico Sul.
"Ele [o atol] liberta do mundo externo, mas aprisiona ao ritmo da natureza", descreve Alice Grosssman, uma das autoras do livro fotográfico "Atol das Rocas 3º51´S 33º48´W" (BEI Editora).
Em Rocas, onde a violência da arrebentação externa contrasta com a tranquilidade de sua lagoa interior, não há fonte de água doce, tempestades oceânicas podem isolar os desembarcados durante dias e tudo precisa ser trazido de fora.
"Você tem que se adaptar à natureza e não tem como dominá-la. Você é um ciclo daquele lugar e só o atol vai dizer a que horas você pode trabalhar", explica a fotógrafa Zaira Matheus.
Mesmo com mais de dez visitas científicas no currículo, Zaira, que também é bióloga, descreve o atol como se fosse o seu primeiro desembarque por ali.
A gente testemunha a natureza como ela é e no tempo dela. Você só tem isso porque o atol é extremamente protegido", conta.
Estorvo no meio do mar
Por séculos, Rocas foi "como um estorvo na paisagem oceânica àqueles que se aproximavam do continente", causando diversos naufrágios que só aumentavam o número de objetos enferrujados, restos de cabanas de náufragos e esqueletos humanos.
Bem que tentaram, a partir do final do século 19, instalar famílias de faroleiros e uma base de pesca fixa. Mas, cada vez que iam para o continente, os profissionais não queriam mais voltar para o atol, por conta da dificuldade de acesso e adaptação àquela geografia bruta de temperamento próprio.
Maurizélia de Brito Silva, que está isolada no atol desde o dia 16 de abril e só deve sair de lá em no meio de agosto, conta que não dá para sentir tédio.
São muitas vidas aqui. Você vai lavar a louça e vê um tubarão passando", descreve a chefe dessa Unidade de Conservação.
Mas desde que colocou os pés ali pela primeira vez, aos 25 anos, Maurizélia sempre volta. Difícil mesmo é retornar à normalidade do continente.
Eu preciso ficar uns três dias dentro de casa, em Natal, até me acostumar outra vez com a água doce e o trânsito da cidade. Às vezes demora uma semana para eu absorver a vida comum.
"Hoje tenho uma vida 'socioanimal' ", brinca essa servidora pública de 56 anos e a terceira geração a atuar em Rocas, como o avô e o pai que foi superintendente do IBDF (que criou a Reserva Biológica do Atol das Rocas) e esteve envolvido na criação da reserva, em 1979.
Como ela mesma conta, sua habilidade em lidar com condições extremas vem de quando morou na Praia de Pipa, no município potiguar de Tibau do Sul, em uma época em que não havia água nem energia elétrica.
Com fiscalização permanente e rodízio de servidores entre 28 e 35 dias, o atol tem hoje uma casa de madeira sobre palafita que, desde 2009, abriga uma estação científica, equipada com energia solar e internet via satélite.
Durante a pandemia de coronavírus, a permanência se estendeu para três meses, aproximadamente, mas um barco faz a reposição de água e alimentos, a cada 40 dias.
Isso é tudo que faz Zélia lembrar-se da civilização.
E quem precisa de mais quando do lado de fora ficam a maior colônia de aves marinhas do Brasil e um dos mais importantes berçários da biodiversidade do país?
Esse Patrimônio Natural Mundial pela Unesco, desde 2001, é endereço de cerca de 150 mil aves, tem animais endêmicos como o peixe donzela-de-rocas e serve como refúgio para a reprodução de polvos, tartarugas-verdes e tubarões-limão.
"Uma unidade de conservação no meio do oceano é o Brasil que deu certo, mesmo sem água doce nem sombra", analisa a bióloga Alice Grosssman, em conversa com a reportagem.
A "xerife do mar"
Entre amigos e conhecidos, Maurizélia é Zelinha; mas para infratores, é a "xerife do mar", o título pelo qual é conhecida na praça, ou melhor, em águas distantes e protegidas.
"Eu gosto muito desse apelido porque coíbe a pesca e me fortalece", afirma Zélia que já precisou apertar o cerco a 60 infratores em oito diferentes barcos, ao mesmo tempo.
Outro perrengue da "xerife", ainda na época em que barracas eram seu único abrigo no atol, foi quando teve que ir atrás de uma embarcação de pesca, mas a gasolina de seu barco acabou no meio da operação. Para retornar à terra firme, teve que pedir ajuda para o próprio infrator.
"Entramos remando, colocamos gasolina e pedi que ele saísse, imediatamente", lembra rindo.
Para ela, a sensibilidade feminina é fundamental nessas horas. "Eu vou com respeito, mas sou rude quando preciso ser. Sou mulher e nordestina", avisa.
Principal ameaça à integridade da REBIO do Atol das Rocas, segundo o plano de manejo dessa reserva, a pesca ilegal nos arredores é um dos problemas que Zélia precisa enfrentar até hoje.
Sua mais recente ação, no último dia 11 de junho, foi a localização via drone de uma embarcação que pescava nos arredores do atol, cuja rede apreendida tinha raias, lagostas, caranguejo guajá, mero — peixe ameaçado de extinção —, e até um tubarão-lixa.
De acordo com Zélia, o proprietário foi multado em R$ 70 mil e teve o barco lacrado.
"Ainda tem uns dois barcos que dão trabalho, mas conseguimos inibir a pesca em quase 90%", comemora a servidora, cujas atividades têm apoio do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), em parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica, através de um fundo que garante recursos para pesquisa, monitoramento e patrulhamento da unidade de conservação.
E mesmo quando não há infratores pescando, Zélia e sua equipe se preparam para possíveis ameaças, como a simulação de apetrechos abandonados no mar, conhecidos como redes fantasmas, como essa de um atrator de pesca utilizada pela frota pesqueira de atum na África.
"Quando não são recolhidas, essas redes vêm derivando pelas correntes marítimas e chegam em águas jurisdicionais brasileiras. Muitas vezes animais marinhos se enroscam na rede, como tartarugas, golfinhos e lobos marinhos, podendo chegar à morte", explica.
Como uma UC de proteção integral, Rocas também não permite atividades turísticas, e Zelinha, com sua inconfundível pontaria certeira na hora de defender o atol, dispara:
Seria um desastre ter turismo aqui. Vamos deixar essa biodiversidade em paz".
Assim como ela explica, Rocas é um ambiente, extremamente, frágil, pois onde se pisa há vidas. Por isso, toda a área é demarcada e nem mesmo os pesquisadores e fiscais estão autorizados a caminharem sem rumo pelo atol e, quando não estão em campo a trabalho, devem permanecer na estação de pesquisa.
"O mar brasileiro já é bastante explorado pela pesca e pelo turismo, e o Atol das Rocas representa apenas 0,001% disso. Um pesquisador circular no atol por alguns dias é diferente de termos muitas pessoas frequentando os mesmos ambientes", compara Zélia, ao justificar o motivo da proibição turística.
O Atol das Rocas exige não só se adaptar, mas também abdicar.
Para o turismo continuar existindo em outros lugares, é preciso manter preservados locais como o Atol Rocas", conclui Zaira.
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