14 caipirinhas e "pé na areia": a 1ª vinda de Anthony Bourdain ao Brasil
Celebrado em bem sucedidos projetos como "World Travel: An Irreverent Guide" e "Roadrunner", livro e documentário que acabam de sair, anos atrás o escritor, apresentador e chef Anthony Bourdain (1956-2018) enviou a seguinte mensagem para este que aqui tecla:
"Aliás, em breve estarei de volta, gravando no Rio. Como minha mulher é brasileira e treina jiu-jitsu na academia Renzo Gracie de Nova York, vamos gravar com a família dele e outras pessoas", avisava.
Apesar de minha ótica otimista, o texto do email não evidenciava um "se puder, apareça". Por outro lado, antecipar a agenda dessa forma generosa talvez fosse, sim, uma espécie de convite implícito.
Já há algum tempo eu trocava mensagens com o enfant terrible ianque, subitamente elevado a um panteão tão alto de estrelato pop a ponto de destoar das camisetas de Ramones, The Clash e congêneres, uma de suas assinaturas de bad boy.
Às vezes, a resposta demorava — mas sempre vinha, acompanhada de sua localização geográfica de momento. "Tô em Nova York, acabei de chegar do Japão. Depois respondo melhor", escreveu certa feita.
Corria 2003 quando Tony passou pela primeira vez pelo Brasil, como convidado do evento Boa Mesa, e para o lançamento de seu segundo livro, "Em Busca do Prato Perfeito". Como editor de uma (à época) conhecida revista de celebridades, e já sabendo quem ele era, adiantei-me para entrevistá-lo.
Mas o que era apenas uma entrevista virou um inesquecível domingão durante o qual foi possível medir com precisão sua temperatura pré-fama. Aliás, não estou sozinho nessa lista: o chef Alex Atala e a empresária Rosa Moraes são outros que também tiveram o privilégio.
14 caipirinhas e além...
A ideia era acompanhar seu day-off na Barra do Sahy, litoral norte paulista. Almoçar com ele, inclusive, no Manacá, casa do top chef Edinho Engel, em Camburi. Com Anthony estava o restaurateur Todd English, outro cozinheiro que virou estrela de TV nos EUA.
Na hora marcada, com o pé já na areia, nada do cara aparecer. Mas como estressar na praia e no domingo? O jeito foi relaxar. Muito tempo depois, surge do canto direito do Sahy uma trupe na qual se destaca um gringo alto e magro usando como bermuda um surrado jeans visivelmente (mal) cortado à tesoura.
Junto de Rosa Moraes e amigos, Bourdain se adianta, apresentando-se. Ao sabor de caipirinhas de uma barraca ao lado, e intercalado por mergulhos de Tony no mar gelado de Maio, o papo flui animado — a primeira impressão foi de um cara relax e boa-praça.
Mas houve um probleminha de último minuto: ele quis experimentar caipirinhas de cada uma das frutas que o barraqueiro tinha — eram sete. Todd English acompanhou o embalo. Tomaram uma de cada — duas vezes. Catorze drinques. Ou mais.
A essa altura minha preocupação era com o, vá lá, "almoço", que precisava ser fotografado para a matéria. Chegamos ao Manacá já quase escurecendo. Apesar do frio de meia-estação, Bourdain continuava descalço. E salgado. E assim ficou até tarde, sem reclamar de nada.
Sem se abalar com o atraso de horas, o chef Edinho fez as honras, servindo todos os seus clássicos. "O chef está me fazendo muito feliz", repetia Bourdain, elogiando, principalmente, o tour du force da casa: papillote de peixe em folha de bananeira com farofa de camarão.
Os melhores restaurantes são aqueles onde a gente vai descalço", brincava o convidado. Alias, brincadeiras e muita descontração davam o tom da conversa na mesa.
Talvez por conta das garrafas de brancos e tintos que a dupla enxugou ao longo dos vários tempos do menu do chef, fui brindado com muito mais que uma entrevista formal. Lembro-me que a certa altura o papo derivou para cinema, com Bourdain lutando para recordar o nome "daquele filmão em que o Tim Robbins e o Morgan Freeman vão parar na cadeia". Não conseguiu.
- "The Shawshank Redemption", matei, tirando não sei de onde um dos raros títulos de filmes que domino nas duas línguas.
- "Isso mesmo, Shawshank Redemption, você é bom de cinema, hein"?, elogiou.
Mais de dez da noite, nas desertas ruelas de Camburi, e seguiu-se a protocolar troca de impressões na porta do Manacá. Ao autografar minha cópia de "Em Busca do Prato Perfeito", Bourdain incorporou à assinatura seu email e o tradicional desenho das facas, espécie de marca registrada sua.
Paixão pelo Brasil
Após a fama súbita, os e-mails trocados com Bourdain ao longo do tempo me ajudaram em algumas matérias e notas exclusivas, quando me bandeei para o jornalismo em gastronomia.
"Sabia que todos nós do Sem Reservas tomamos coquetéis contra diarreia de tempos em tempos?", revelou, para minha surpresa, em uma mensagem. "Esse é um dos riscos da profissão. Mas somos profissionais em evitar intoxicações mais sérias. Temos que ser. Até porque eu como tudo o que me servem, mesmo quando sei que não vou gostar. Sempre me esforço para ser um bom convidado".
Em outra ocasião, fez apologia apaixonada à feijoada, seu prato predileto por aqui. "Amo de paixão. A feijoada é possivelmente o maior exemplo de genuína criatividade na cozinha ao longo de toda a história".
"Aliás, qualquer um que não arrumar um jeito de gostar do Brasil, não tem coração", escreveu-me, quando conheceu Belém e o estado do Pará. "Lá é a fronteira final da comida. Fiquei chapado com a quantidade e variedade de diferentes frutas e peixes, incrível".
Amizade além das panelas
"Ele era sempre muito divertido, mas sempre muito focado", comenta Alex Atala, que também conheceu o antes e o depois de Bourdain. "Ele veio duas vezes ao D.O.M. e uma vez ao Dalva e Dito. Nós nos encontramos também algumas vezes, em Nova York, e até viajamos ao Japão".
Outra identificação recorrente era a mútua paixão pelo jiu-jitsu. "Não era só a mulher, por influência dela, depois ele também começou a treinar. Disputou campeonatos e até ganhou um", recorda o chef.
"Naquela primeira vez (em 2003) ele estava cem por cento desarmado. Das outras, foi legal mas não foi a mesma coisa", atesta a empresária e educadora Rosa Moraes, pioneira na educação de gastronomia no país, recém empossada presidente da sessão latino-americana da premiação 50 Best Restaurants.
A brasileira conheceu Tony — e ficou sua amiga — em Nova York poucos dias após o Onze de Setembro.
"Eu morava em Connecticut em 2001 e recebi o convite para o lançamento do 'Em Busca do Prato Perfeito'", relembra.
Atuando no exterior pela Universidade Anhembi Morumbi, Rosa monitorava nomes para trazer a eventos no Brasil. "E ele era legal, estava ainda na lista de best-sellers do New York Times com o 'Cozinha Confidencial', seu primeiro livro". Aí, houve o ataque terrorista.
Mesmo assim, uma semana depois peguei o metrô com meus filhos e fui ao evento, a livraria era downtown, na região do desabamento. Um horror, um baixo astral geral, cheiro de queimado ainda no ar. Foram umas dez pessoas, apenas. E ele nunca esqueceu que eu fui".
Foi em sua casa na Barra do Sahy que Bourdain se hospedou. "Aquele final de semana na praia foi delicioso, divertido. Bebemos muito, e o almoço no Manacá foi antológico".
Antes, em São Paulo, por ocasião de alguns compromissos mais formais, o bardo foi ouvido dizendo 'let's get out of here' ("vamos cair fora") por mais de uma testemunha, quando achava a coisa chata ou burocrática demais.
"Me leva onde você comeria", era outra frase sua, em recusa, por exemplo, a uma feijoada que suspeitou ser "de grife" — não por coincidência, beliscou "churrasquinho de gato" e hot-dog em barracas de ambulantes na porta de um ensaio da Rosas de Ouro, antes de arriscar desajeitados passos de samba na quadra da escola.
Homem de negócios
Rosa Moraes diz ter guardado durante anos na casa de praia as pernas que o ex-chef "amputou" a tesouradas de sua calça jeans, que com o tempo, óbvio, viraram pano de chão. Mas por mais que a amizade tenha sobrevivido ao tempo e à distância, ela sentiu que a pressão do showbusiness aos poucos acabou por transformar o amigo.
"Nós nos encontramos várias vezes aqui e em Nova York. Ele me atendia a qualquer hora, às vezes até me surpreendia. Um dia, recebo a mensagem, 'estou em Belô, te vejo em breve'. Eles tinham vindo gravar em BH".
A educadora ainda foi convidada a participar do programa "Sem Reservas" do apresentador, refazendo a visita ao restaurante Manacá — que Bourdain nunca esqueceu — e até levando-o comer testículos de boi e de galo no Valadares, boteco paulistano na Lapa.
Mas ainda assim, eu o sentia cada vez mais sério. Aquele cara superdivertido que eu conheci, aos poucos foi sumindo, ficando mais sério, sisudo, com a agenda cada vez mais tomada, parecendo um businessman".
Ironicamente, em resposta a uma pergunta minha, no último email que trocamos, ele afirmava: "Sei que tenho alterações de humor e que sou até meio bipolar. Mas no fundo, me vejo como um cara otimista. Tanto que, no meu cartão de visitas — se eu tivesse um —, gostaria que estivesse escrito: 'entusiasta'".
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.