O destilado mais popular do mundo é um ilustre desconhecido. Prazer, baijiu
Se juntarmos a quantidade de vodca, uísque, rum, gim e tequila consumidas anualmente no mundo, não chega à montanha que um destilado praticamente desconhecido no Ocidente atinge.
Segundo o IWSR, maior autoridade global em análise do mercado de bebidas, o chinês baijiu (a pronúncia é algo como "baijou") é o destilado mais consumido no mundo, com 10,8 bilhões de litros em 2018.
A imensa maioria dos bebedores fica dentro do país, o que também acontece com outros álcoois tremendamente populares, o coreano soju e a cachaça, que praticamente não sai do Brasil (somente cerca de 1% da produção é exportada, de acordo com o Centro Brasileiro de Referência da Cachaça).
Tal qual a nossa aguardente, o baijiu é uma bebida antiga, presente há séculos na história nacional, com uma produção barata em larga escala, mas também com uma diminuta e sofisticada linha de garrafas requintadas. Nos últimos anos, ela começou a chamar atenção fora dos limites da China.
Arroz, painço e outros grãos, dependendo da região, podem servir de matéria-prima para essa bebida incolor e de graduação alcoólica que varia de 35% a 60%. Aqueles considerados de melhor qualidade são feitos de sorgo vermelho (aliás, "O Sorgo Vermelho", filme de estreia de Zhang Yimou e vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim em 1988, se passa em uma destilaria).
Envelhecido e engarrafado em embalagens sofisticadas, o baijiu de marcas mais caras é um presente popular entre as classes abastadas.
Zhou Enlai, o primeiro primeiro-ministro chinês, e Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos entre 1969 e 1974, brindaram com baijiu quando os países restabeleceram as relações internacionais — além disso, políticos e empresários usaram, por muito tempo, o baijiu como uma efetiva forma de propina.
História antiga
O consumo de álcool na atual China tem cerca de 9 mil anos. Desde então, ele teve participação central no desenvolvimento da civilização chinesa, argumenta o autor americano Derek Sandhaus, pesquisador de bebidas chinesas, no livro "Drunk in China" ("bêbado na China", sem edição no Brasil).
"Foi a busca pela embriaguez que levou um bando de nômades a se estabelecer ao longo do Rio Amarelo há quase 10 mil anos", escreveu.
Desde então, o álcool permeou todos os aspectos da cultura chinesa, deixando uma marca em sua religião, arte e literatura, e em sua política, filosofia e guerra."
As primeiras bebidas da China ancestral eram tipos antigos de cerveja e vinho, mas já no século 12, durante a Dinastia Jin, evidências arqueológicas de alambiques indicam o surgimento das primeiras versões de baijiu (ou shao jiu), explica o historiador britânico Stephen G. Haw em "Marco Polo's China" ("a China de Marco Polo", sem edição no Brasil).
O baijiu moderno surgiu provavelmente na Dinastia Ming (1368-1644), quando as técnicas árabes de destilação, que propiciam bebidas com maior teor alcoólico, chegaram à China. Portanto, ele nasceu mais ou menos na mesma época que outros destilados na Europa (brandy, século 14, ou vodca, no 15) e na América (cachaça, século 16).
Novos mercados
Devagarinho, o baijiu começa a aparecer fora da China. Nos Estados Unidos, em cidades com significativas populações chinesas, como Los Angeles, San Francisco e Nova York, bares e restaurantes asiáticos oferecem marcas como Byejoe.
A estratégia, segundo o IWSR, é introduzir a bebida por meio de ambientes onde ela já é razoavelmente conhecida, para não ser algo "exótico demais". Assim, os chineses matam a saudade e os americanos a descobrem, por meio de coquetéis feitos por bartenders de primeira linha.
O baijiu é representado na Europa com marcas como Ming River, feito na destilaria mais antiga da China, com 448 anos de tradição. Já na Austrália, em 2018, a Good Spirits lançou o Australian Baijiu.
Não bastasse a referência à origem no nome, que evidencia que se trata de um baijiu não produzido na China, o rótulo escancara um coala abraçado a um bumerangue, só para não deixar dúvida que a tradição do baijiu não precisa de denominações geográficas controladas. O Australian Baijiu ganhou, inclusive, prêmios na própria China.
Na Ásia, os produtores também estão se mexendo para conquistar novos públicos. De olho nos mais jovens, a Jiangxiaobai, fundada em 2012, investe em rótulos coloridos e com frases de efeito. A marca já patrocinou festivais de música, séries e até um anime, cujo protagonista leva seu nome.
A inovação vai além da embalagem e do marketing, e a bebida vem em versões saborizadas, com menor graduação alcoólica. Dessa forma, as novas gerações estão descobrindo coquetéis à base de baijiu em metrópoles como Pequim, Xangai, Hong Kong e Shenzhen.
Outra mudança recente é uma certa gourmetização do baijiu. Segundo a firma de análises de mercado Euromonitor International, em um levantamento para o site Bloomberg, o consumo da bebida caiu 21% nos últimos cinco anos, mas o faturamento cresceu 39%. Ou seja, fabricantes de baijiu barato estão fechando as portas, enquanto mais gente está comprando baijiu caro. Eram 1.600 destilarias em 2017, contra 1.040 em 2020 (microprodutores não entram na conta).
O baijiu popular, que sai por R$ 10 em uma garrafa de 500 ml, está perdendo espaço para o premium, como o Flying Fairy, da Kweichow Maotai, que custa o equivalente a R$ 1170. Maotai é um tipo específico de baijiu, feito na cidade de mesmo nome. É o equivalente ao conhaque (o francês, de Cognac, não os de alcatrão do boteco da esquina), favorito para ocasiões especiais de figuras iminentes do governo e empresários ricaços — e sim, o baijiu que Nixon bebeu na China era maotai.
Em 2017, a Kweichow Maotai se tornou a maior empresa de bebidas destiladas do mundo, ultrapassando a poderosa Diageo, dona de uma longa lista de marcas que inclui Smirnoff, Johnnie Walker, Tanqueray e Ypióca. O problema é que essa ascensão meteórica (a empresa foi fundada em 1999) causou problemas aos maiores interessados: os clientes que querem apenas beber. Por causa dos preços estratosféricos, as garrafas viraram artigo de especulação. Deixaram de ser bebida para ser investimento.
Nos últimos anos, tem sido difícil encontrá-las nas prateleiras, então os mais afoitos desembolsam até R$ 2.300 por uma garrafa de meio litro em mercados paralelos. Enquanto o baijiu começa a ficar conhecido em outros países, sua versão mais nobre está ficando cada vez mais difícil de ser encontrada na própria China.
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