Uma busca rápida na internet sobre Shodoshima, ilha na província de Kagawa, a 650 quilômetros de Tóquio, logo revela os dois maiores atrativos locais: as produções de shoyu, com 400 anos de história, e de azeite de oliva, iniciada bem depois, em 1908.
Mas uma das grandes mazelas do Japão também atinge a ilha com um quê mediterrâneo: o envelhecimento da população e, paralelamente, a região sofreu por décadas as consequências ambientais do descarte ilegal de lixo industrial em suas águas na década de 1970. Diante dessas adversidades, o meio encontrado para ressignificar o arquipélago e fazer a roda do turismo girar foi a arte.
De lixo industrial a polo cultural
A pequena revolução teve início em 1992 em Naoshima, com a abertura do Benesse House, hotel e museu de arte contemporânea em um mesmo prédio, cujo projeto foi assinado por Tadao Ando, um dos grandes nomes da arquitetura japonesa.
Dois anos depois, a ilha ganhou seu cartão-postal: a obra "Yellow Pumpkin", da artista plástica japonesa Yayoi Kusama, que foi levada pelo mar no último do 8.
Encabeçado por um conglomerado japonês ligado à educação, a Benesse Holdings, o projeto foi o nascedouro do que se tornaria um dos maiores eixos de arte contemporânea do Japão.
Quase três décadas depois, o roteiro abarca museus e obras a céu aberto em 12 ilhas da região — embora Shodoshima seja a maior em área, os acervos mais robustos estão em Naoshima e Teshima, a mais atingida pelo descarte ilegal de lixo.
Muitas das obras são legado do Setouchi Triennale, festival de arte contemporânea realizado a cada três anos desde 2010 — a última edição, em 2019, recebeu quase 1,2 milhão de visitantes em 107 dias. Apesar da pandemia, a próxima trienal segue prevista para a primavera de 2022 (mas tem havido atrasos na seleção dos artistas que vão expor).
Nasce um mecenas
Há dois anos, Shodoshima é o lar do administrador aposentado Jun Ishii, 65. Assim como ocorreu nas ilhas do Mar Interior de Seto, a trajetória dele ganhou um novo sentido graças à arte e ao festival Setouchi Triennale.
Se estamos na era de viver até os 100 anos, digo que dediquei boa parte dos primeiros 50 ao trabalho, agora só quero fazer o que gosto", diz.
Ele teve uma trajetória semelhante à de muitos japoneses, que iniciam e encerram a carreira na mesma empresa, mas hoje se dedica a fomentar a cena de artes plásticas em Shodoshima. Sua previsão é inaugurar um novo museu de arte contemporânea no outono, entre outubro e novembro.
Tudo começou em 1995, quando a cidade de Kobe, região central do Japão, foi atingida por um grande terremoto. Na época, Ishii atuava na área de parcerias artísticas da empresa onde trabalhava - uma delas consistiu em intervenções do artista e fotógrafo francês Georges Rousse.
Eles ficaram próximos e voltaram a se encontrar quando Ishii convidou Rousse para uma intervenção na casa que havia sido de seus avós em Shodoshima, hoje batizada de Georges Gallery.
A obra "Shodoshima", de 2018, consiste em um círculo pintado de forma tridimensional com folhas de ouro na sala de tatame (e que só pode ser visto perfeitamente dependendo do ângulo que se olhe ou fotografe). No sótão, outra intervenção da mesma série foi feita nas paredes com giz de cera.
Aberta para a Setouchi Triennale de 2019, a galeria recebeu 31 mil visitantes, segundo Ishii. Nesse meio tempo, sua esposa faleceu. "Por muito pouco ela não viu a galeria pronta", lamenta ele, que tem dois filhos, cinco netos e mora sozinho na ilha com os poodles Kotaro e Kojiro.
Entre shoyu, azeite e arte
Nova empreitada de Ishii para o próximo Setouchi Triennale, o museu com 110 obras já está praticamente pronto, após um ano de meio de reformas e aquisição do acervo — os trabalhos foram doados por artistas ou comprados online por ele em galerias e leilões durante a pandemia.
O museu de arte contemporânea Hishio no Sato (que pode ser traduzido como "vilarejo do shoyu") está instalado na antiga sede da associação de produtores de molho de soja, um prédio de 1928 doado pela prefeitura. Segundo Ishii, o governo local, animado com o sucesso da Georges Gallery, cedeu o espaço para um novo projeto.
"Mas, infelizmente, por enquanto não temos nenhum outro apoio", diz ele. Ishii não revela qual foi o investimento no museu, mas oferece uma pista: "Daria para comprar um bom apartamento em Tóquio." Como se sabe, o metro quadrado na capital japonesa está entre os mais caros do mundo.
Entre outras obras, o acervo reúne dois trabalhos do artista Kenji Uematsu, um dos integrantes do movimento artístico pós-guerra Mono-ha. Há ainda fotos da obra "The Umbrellas", de Christo e Jeanne-Claude. Além disso, um destaque singelo do acervo é uma coleção de 40 pinturas retratando Shodoshima coletadas de artistas de todo o Japão.
Ishii diz que por enquanto pretende viabilizar o funcionamento do espaço apenas com a cobrança de ingresso e as vendas em uma loja anexa. A ideia é que a equipe seja rotativa e composta apenas por jovens locais.
Navegando nas ilhas-museu
As três ilhas só podem ser acessadas de ferry boat — a base mais comum é a cidade de Takamatsu, na província de Kagawa.
É possível pernoitar em Takamatsu ou nas ilhas (Naoshima e Shodoshima oferecem melhor estrutura). Os sites Benesse Art Site Naoshima e Art Setouchi têm informações atualizadas sobre os museus e instalações artísticas em inglês.
Naoshima
Tem boa estrutura hoteleira e alguns restaurantes. A melhor forma de locomoção é o ônibus.
Fora os quatro hotéis-design Benesse (Museum, Park, Oval e Beach), com diárias a partir de 26 mil ienes sem café (cerca de R$ 1,2 mil), há opções de guesthouses mais baratas.
Logo na chegada ao porto é possível avistar a "Red Pumpkin", de Yayoi Kusama. Também perto do porto está o "I Love Yu", uma típica casa de banho japonesa transformada em instalação artística por Shinro Ohtake.
Acessível de ônibus, a área de Honmura concentra mais museus e intervenções, como o Go'o Shrine, santuário próximo a um mirante restaurado pelo fotógrafo e arquiteto Hiroshi Sugimoto.
Na chamada Benesse House Area estão o Benesse House Museum (que pode ser visitado por não-hóspedes) e os ótimos Lee Ufan Museum, com obras do prestigiado pintor, escultor e filósofo coreano, e Chichu Art Museum, um impressionante projeto de Tadao Ando embutido na colina para abrigar obras de Claude Monet e James Turrell, entre outros artistas.
Teshima
Diferentemente da vizinha, Teshima ainda preserva uma atmosfera rural, graças às cênicas plantações de arroz cercadas pelo mar. Bicicleta e carro são os transportes mais convenientes na ilha.
Em uma colina ao lado dos arrozais está o Teshima Art Museum, cuja estrutura sem pilares projetada pelo arquiteto Ryue Nishizawa e pelo artista plástico Rei Naito se assemelha a uma gota d'água quando toca o chão. No interior dela, água brota continuamente do solo e se movimenta guiada pelo desnível do piso.
Na Teshima Yokoo House, o designer Tadanori Yokoo transformou uma antiga residência com onze obras, incluindo a releitura de um jardim japonês com pedras vermelhas. À beira-mar, uma simpática casinha abriga o Les Archives du Coeur, instalação do francês Christian Boltanski na qual os visitantes podem ouvir batimentos cardíacos de pessoas do mundo todo.
Shodoshima
Mais extensa ilha do Mar Interior de Seto, Shodoshima pode ser percorrida de carro ou ônibus.
O roteiro de arte na "Ilha das Oliveiras", como é conhecida, inclui a Georges Gallery, a Fukutake House e o Hishio no Sato Museu de Arte Contemporânea, que deve ser inaugurado em outubro.
Shodoshima também é conhecida por abrigar a primeira plantação bem-sucedida de oliveiras do Japão e tem lojas de azeite e outros produtos à base dele.
A produção de shoyu é outra tradição local, com um método de fermentação em barris de madeira de mais 400 anos. Hoje há cerca de 20 produtores — um deles, a Marukin, abriga ainda um museu que mostra as etapas de preparo do condimento.
*Colaborou Nathalya Teraoka (intérprete)
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