Alvo de disputa entre Peru e Chile, pisco ganha impulso na coquetelaria
Em meio aos reflexos da pandemia e, mais recentemente, de turbulências durante o período eleitoral, o mercado do pisco no Peru reage bem às intempéries. Orgulho nacional, o destilado de uvas, patrimônio cultural da nação, encontra-se em franca recuperação do terreno perdido para a covid-19.
"Se pensarmos que os 15 últimos meses foram sofridos, sem festas, reuniões ou casamentos e com hotéis, bares e restaurantes fechados, estamos entrando novamente no rumo certo. No momento há um novo grande impulso em torno do pisco no Peru", avalia o empresário Johnny Schuler.
Sua folha corrida é extensa: restaurateur, produtor de piscos premium e personagem da TV peruana, Schuler é a máxima autoridade e embaixador mundial da bebida. Autor de best sellers pisqueros, comandou durante anos o ótimo programa "Por las Rutas del Pisco", sucesso na TV com pauta centrada na tradição da bebida, e no qual o apresentador transitava de visitas a destilarias históricas à mixologia atual.
No Peru, a produção anual de pisco beira os dez milhões de litros. Desse total, aproximadamente 80% abastece o mercado interno, com o restante sendo exportado — o maior cliente, claro, são os EUA, seguido, em menor escala, pelo Chile, onde entra sob o nome de "aguardente de uva" devido à eterna rusga etílica dos dois países em torno da bebida (ver abaixo).
Como em todo o mundo, com o lockdown, produtores foram tremendamente castigados. Mas a retomada está surpreendendo. Em parte, graças à reação na economia de Tio Sam — se 2020 não existiu, para 2021 é esperado um balanço semelhante ao de 2019, considerado um ano de ouro para o produto.
"Mas é importante que as pessoas aprendam que o pisco é muito mais que apenas o Pisco Sour", advoga Schuler, em referência ao popularíssimo drinque, cujo status no Peru equipara-se ao da Caipirinha aqui.
"Ele é bom como aperitivo, como digestivo ou em coquetéis. Vai bem na cozinha, para assar, flambar, fazer reduções, finalizar sobremesas. Sua complexidade é um convite à criatividade dos bartenders, no momento há toda uma nova cena de drinques e coquetéis em Lima.
Nenhum outro destilado tem tantas singularidades".
O que é o pisco
Fiel ao lema "só queremos o que a natureza nos dá", o pisco é, basicamente, a pura expressão de terroirs peruanos: um destilado obtido da fermentação do mosto de uvas frescas, aproximadamente seis a sete quilos da fruta para cada garrafa da bebida, dependendo do estilo.
E, diferentemente de outros spirits (vodca, uísque, rum, gim, tequila, cachaça), destilado apenas uma única vez. Com graduação alcoólica entre 38º e 48º graus, nunca passa por barris ou quaisquer madeiras. "O pisco é claro, puro, pristino. Não mudamos ou acrescentamos nada", assegura Schuler.
O termo pisco — "pássaro" — deriva da língua indígena quéchua, ainda falada em regiões do Peru e países vizinhos. Devido a condições climáticas adversas, em território peruano são apenas cinco, as regiões produtoras de uvas apropriadas à destilação: Arequipa, Moquegua, Lima, los valles (Sama, Caplina, Locumba) e, a mais notória, Ica, famosa por seus vinhedos e por abrigar a cidade homônima de Pisco.
É justamente em Ica que, reza a história, remontam as origens da bebida, no império Inca, por volta do ano 1500. Consta também nos anais que, por volta de 1614, para evitar a concorrência com os vinhos espanhóis, os próprios colonizadores ibéricos proibiram a produção vinícola no Peru — o que impulsionou a produção de pisco.
Ao todo, são oito as variedades de uvas pisqueras, divididas em aromáticas (Torontel, Itália, Albilla e Moscatel) e não aromáticas (Quebranta, Negra Criolla, Molla e Uvina). Tida como a mais nobre, sofisticada (e apreciada), em tempos recentes a produção de uvas Moscatel vê suas safras rarearem.
Dessas castas derivam as diferentes classes de pisco, de acordo com o método de elaboração: Puro (o mais tradicional, destilado de uma única variedade de uva), Verde (a partir do mosto de uvas com fermentação interrompida) e Acholado (duas ou mais diferentes uvas) — ainda no repertório, a combinação Acholado-Mosto Verde.
Tradição pisquera
"Queríamos fazer algo verdadeiro, com história e tradição", explica Johnny Schuler sobre a aquisição da Hacienda La Caravedo, monumento histórico documentadamente produzindo piscos desde 1684 — a mais antiga destilaria peruana.
Na hacienda foi montada uma moderna destilaria, responsável pelo Pisco Portón e por outras três marcas. Em épocas de funcionamento normal, existem tours a La Caravedo, para conhecer os processos de destilação (o ancestral e o moderno), sendo possível até hospedar-se no local, com programações incluindo cavalgada, shows folclóricos e gastronomia típica.
É do Peru ou do Chile?
Tema controverso: e a polêmica com o Chile, também autodenominado produtor do "verdadeiro pisco"? "É simples: não há polêmica, há fatos", enfatiza Schuler.
"Enquanto o Peru produz pisco há séculos, só em 1937 o Chile fundou uma cidade de nome Pisco Elqui, porque necessitava de uma denominação geográfica para exportar para os EUA.
Além disso, no Chile há múltipla destilação, acréscimo de água para regular a graduação alcoólica e a bebida passa por barris de madeira. Ou seja, não é pisco, é aguardente. Ponto final".
Por conta de mais de três décadas de carreira em prol da difusão mundial do pisco, Schuler foi agraciado pelo congresso peruano com a Medalha de Honra, por serviços prestados ao país.
Pisco, o novo gim
No Brasil, em que pese a projeção, em anos recentes, da gastronomia do país — glória peruana, o ceviche hoje é unanimidade até em churrascarias —, o pisco não acompanhou o compasso. E seria quase um virtual desconhecido não fossem esforços isolados.
Além do desconhecimento, falta de investimentos e até de interesse, estão por trás do problema. "Apesar dos bons piscos não chegarem aqui, trata-se de uma bebida maravilhosa", crava o top bartender e consultor Kascão Oliveira, pioneiro na difusão do gim na coquetelaria verde-amarela.
"Dá quase pra dizer que não há pisco no Brasil, o que é uma pena. Como nunca houve investimentos nem um trabalho sério de importadoras ou órgãos de classe, os profissionais de bar deixaram o pisco de lado. Chegou-se ao cúmulo da difusão de receitas errôneas de Pisco Sour, anos atrás".
Por ter trabalhado em casas peruanas ao lado de grandes bartenders do país, Oliveira garante que o pisco deveria surfar o mesmo status que o gim, por conta de seu incrível potencial na coquetelaria.
É questão de educar o consumidor. Em bares do Peru há menus de pisco comparáveis aos que temos no Brasil, por exemplo, de Gim Tônicas ou de Caipirinhas contemporâneas".
Otimista em relação a um novo sprint do pisco em bares brasileiros, Oliveira assina a receita abaixo, de um Pisco Sour tradicional. "A clara de ovo da receita original pode ser difícil de ser trabalhada fora do ambiente de bar, então recomendo o uso de albumina, que é a clara já pasteurizada".
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