Vinho de dendê? Bebida tradicional em vários países é esquecida no Brasil
"Cansado, foi direto a uma das poltronas, a que era o seu 'trono', e afundou no assento. Ainda estava tirando a camisa suada, quando a Mãe começou a falar sobre todas as pessoas que a tinham visitado naquele dia. Apesar de estar ao lado dele, não percebeu o cheiro forte de vinho de palma que emanava, como moscas revoando uma cabra com uma ferida recente."
No romance "Os Pescadores" (Globo Livros, 2015), o escritor nigeriano Chigozie Obioma mostra um traço cultural de seu país que teve relevância no Brasil. Hoje, o vinho de palma, ou vinho de dendê, pode ser algo do qual nunca ouvimos falar, mas já houve um tempo em que ele era bastante popular deste lado do Atlântico.
Vinho de palma é uma bebida alcoólica fermentada, obtida por meio da seiva do dendezeiro, uma palmeira originária da costa da África Ocidental e que se adaptou bem ao clima brasileiro, trazida provavelmente no século 16 no tráfico negreiro. "Dendê" é uma palavra oriunda de ndénde, que significa "palmeira" em quimbundo, um dos principais idiomas falados em Angola.
"É, sem dúvida, a mais importante palmeira africana", escreveu o antropólogo Raul Lody, especialista em alimentação e religiões afro-brasileiras, em "Dendê - Símbolo e Sabor da Bahia" (Senac, 2009).
A ela recorrem as populações nativas, desde tempos remotos, em busca de cobertura para suas habitações, gordura e palmito para alimentação, toilette, iluminação, alimento para os animais, bebida fermentada e, especialmente, azeite"
O vinho dessa palmeira se tornou conhecido em quase toda a costa subsaariana, de Guiné-Bissau a Angola, passando por arquipélagos como São Tomé e Príncipe. Além da África, a bebida também ganhou popularidade em outros continentes.
É que não é só o dendezeiro que pode servir de matéria-prima para a bebida: diversas palmeiras, inclusive o coqueiro, cumprem a função. Dessa forma, Índia, Sri Lanka, Malásia e Indonésia, entre outros países, têm suas versões locais de vinho de palma.
Refrescante e natural
A produção é simples. Uma incisão no alto do caule da palmeira faz escorrer a seiva até potes de barro colocados no chão. Ao longo do dia, leveduras e bactérias do ar fermentam o líquido açucarado e branquicento, gerando uma bebida agridoce.
No século 18, o vinho de dendê era comum nas ruas de Salvador, onde ele se desenvolveu como representante da cultura e das religiões de matrizes africanas. Mas isso ficou para trás.
"Hoje trata-se apenas de produto difundido oralmente de geração para geração por alguns poucos conhecedores", escreveu Laiana de Jesus São Ricardo em um artigo na revista Ingesta, publicação da USP especializada em alimentação e drogas. Segundo ela, o vinho, que "tem significado real para as religiões de matrizes africanas", perdeu espaço nas cerimônias religiosas para bebidas industrializadas.
"Hoje desaparecido dos rituais religiosos nos terreiros e das vendas de rua, o vinho de dendê é apenas uma lembrança. Os candomblés e xangôs restringem-se a algumas bebidas de função litúrgica, como o aluá, um tipo de bebida feita de milho, rapadura, gengibre e água; e a cachaça para os exus", explica Lody.
É por isso que, hoje, nós associamos o dendê ao azeite quase automaticamente.
Não é o que ocorre em outros países. Na Nigéria, a literatura é um termômetro. Obioma, representante de uma nova geração de escritores do país que tem conquistado público e crítica no exterior, cita a bebida de passagem.
Já em 1958, no clássico "O Mundo se Despedaça" (Companhia das Letras), Chinua Achebe descreveu em detalhes a produção. Antes dele, Amos Tutuola, em 1952, colocou a bebida no centro da história em "O Bebedor de Vinho de Palmeira" (Círculo do Livro).
Até hoje, o vinho de dendê mantém sua popularidade no país mais rico e populoso da África. Mas mesmo lá, e em outros lugares, a fabricação segue ritmos e sabores tradicionais, sem padronização nem escala.
Muito disso se explica na natureza do produto. É um álcool de fermentação espontânea, que brota do trabalho de microrganismos dispersos no ar quente e úmido dos trópicos. Além disso, é uma fermentação rápida, que vira vinagre em poucos dias. Por isso ele costuma ser bebido localmente. Em festas e celebrações na Nigéria ou em lojinhas de beira de estrada na Índia, por exemplo.
Adaptação para novos públicos
A industrialização é um desafio em que poucos se aventuraram. No passado, houve tentativas de ampliar a produção e atender as grandes comunidades africanas nos Estados Unidos. Em 1975, uma companhia de Gana tentou, mas não deu certo.
Hoje, alguns empresários querem mudar esse cenário, segundo uma reportagem do site Atlas Obscura. Hemant Kishore, chef de Las Vegas com ascendência indiana, fez uma parceria com produtores de vinho de palma do México para levar a bebida a seu restaurante.
Onye Ahanotu, engenheiro de materiais de origem nigeriana, aposta na alta tecnologia: em vez de extrair a seiva e deixá-la fermentar, sua empresa está desenvolvendo uma combinação líquida de açúcares que deverá ser molecularmente idêntica à matéria-prima. Caso consiga, terá um produto mais estável e sustentável, pois não dependerá de transporte nem derrubará árvores (apesar de não ser necessário, há produtores que matam a palmeira para fazer vinho). Para a fermentação, ele já garantiu uma cepa de leveduras que colheu em uma viagem à Nigéria.
Já Daniella Ekwueme tem um plano bem menos futurista. Em 2017, ela lançou a Pamii, marca que quer que o vinho de dendê não seja apenas aquela bebida cerimoniosa e tradicional, servida em cabaças. A Pamii alinhou parcerias com produtores rurais a fim de levar a bebida, engarrafada, aos centros urbanos da Nigéria. Com um marketing focado no público jovem, uma identidade visual praiana e 4% de teor alcoólico, a Pamii já tem planos de exportação.
Quanto ao Brasil — sequer citado nos planos da empresa, que mira nos 460 mil nigerianos que vivem nos Estados Unidos e constituem uma das mais bem-sucedidas comunidades do país — o vinho de dendê é uma curiosidade, um objeto de estudo em faculdades. Cada vez mais distante do cotidiano, como já foi na Bahia de 300 anos atrás.
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