Ilhas Faroé: o outro lado do lugar marcado por cenas da caça aos golfinhos
Na semana passada, as Ilhas Faroé voltaram aos noticiários com as chocantes imagens da matança de 1.400 golfinhos. Apesar de legalizada, sob a justificativa de estar conectada às raízes culturais deste território autônomo da Dinamarca, o volume desta caçada chamou a atenção do governo local, que prometeu revisar o regulamento de captura dos animais.
Felizmente, não vi ao vivo estas cenas. Para a produção desta reportagem, visitei as Ilhas Faroé há cerca de um mês. Conversei com os moradores sobre a prática ancestral de caça e também pude conhecer outros aspectos deste inóspito arquipélago no Atlântico Norte para compor o relato que você acompanha a seguir.
Cruzo a recepção do imponente hotel carregando nas costas uma mochila, celular na mão direita e uma máscara cirúrgica cobrindo meu nariz e minha boca.
Estranho o fato de ver atrás do comprido e elegante balcão de fórmica preta dois concierges a sorrir para mim: posso ver os dentes brancos deles, as covinhas nas bochechas da mulher loira de nem 25 anos.
"Pode ficar à vontade, senhor. Aqui não é necessário estar de máscara", adverte o rapaz também loiro, do alto de seus quase dois metros. A verdade é que desde que tinha deixado o aeroporto em Vágar, a quarenta minutos de carro do meu hotel, as máscaras se tornaram tão raras a ponto de sumir do meu alcance visual.
Pela primeira vez em meses, podia ver as expressões de todas as pessoas nas ruas, nos restaurantes, nos lugares fechados. O fato me deixou mais embasbacado, talvez, que a vista do quarto do Hotel Føroyar para a baía de Tórshavn, a colorida capital local.
Nem parecia a mesma região que, há pouco mais de um ano, relatou a maior concentração de casos de covid-19 em toda a Europa — mais que o dobro da Espanha no verão de 2020, ultrapassando até territórios do continente com populações muito pequenas, como Montenegro, Luxemburgo e Andorra.
Pode não parecer quase nada, mas 20 casos diários aumentaram exponencialmente a média e deixaram a população de cerca de 50 mil habitantes (uma das menores da Europa) em alerta.
Mas o governo das Ilhas Faroé, um arquipélago de 18 ilhas (algumas quase inabitadas, em que o governo precisa pagar para ter gente a cuidar), soube controlar a situação: foram pouco mais de mil casos, apenas duas mortes e uma lição que rendeu meses com zero novos casos.
A imagem positiva fez brilhar os olhos dos turistas, principalmente os dos países nórdicos e do Norte da Europa, que fizeram o fluxo de restaurantes, hotéis e outros serviços regressarem antes do previsto.
"O turismo já está de volta, vou pelo menos duas vezes por dia ao aeroporto", diz a motorista de 45 anos que me leva de volta para Vágar. "Mas não regressamos ao ponto do que tínhamos antes da pandemia, ainda bem", completa.
O alívio é não ter mais os cruzeiros que diariamente desembarcavam no porto de Tórshavn cheios de visitantes que iam embora com a mesma pressa que desciam dos navios. "Não agregam para nosso turismo", desabafa.
Durante os meses de restrições de viagens internacionais, as Ilhas Faroé se tornaram palco de um novo — e muito mais qualificado, segundo os locais — tipo de turismo.
Com paisagens quase desertas, trilhas acachapantes e uma natureza selvagem, constituída por formações vulcânicas e muito mar, as ilhas se tornaram o tipo de destino que a pandemia fez crescer.
Há os que chegam curiosos por desbravar os muitos cantos das ilhas, de cima dos penhascos e pelas vastas áreas verdes que mais parecem os territórios escolhidos como residência dos hobbits da saga tolkieniana — ou das gravações de "Game of Thrones".
Outros preferem desbravar as ruazinhas repletas de casas com telhados tomados por grama — uma tradição da paisagem local — da capital Tórshavn, visitando as lojas de artesãos e provando a típica comida local.
Ali, embora a oferta já esteja globalizada com pizzas e hambúrgueres, as carnes fermentadas são a principal pedida: peixes, carneiro e, sim, até baleia passam por um processo de conservação.
Elas são mantidas por meses penduradas dentro de casinhas de madeira onde o processo fermentativo faz com que durem mais tempo. O carneiro é o mais emblemático: tornou-se o prato tradicional faroês.
Até porque as ilhas são tomadas por eles: são mais de 100 mil carneiros e ovelhas espalhadas pelas pastagens, a subir e descer as montanhas — e às vezes a descansar nas estradas.
Quando fermentados, eles adquirem um sabor muito mais pronunciado, às vezes até desafiador para os não habituados. No caso da baleia, a carne adquire uma coloração preta e um gosto semelhante a fígado de boi.
"Era a forma que tínhamos de garantir o alimento nos tempos de escassez", explica o chef Allan Leivsgarð Henriksen, do restaurante Ræst, especializado em fermentados, aberto em 2016 no centro da cidade para atender a curiosidade de quem visita as Ilhas Faroé. Talvez seja o primeiro (e único) restaurante de fermentados do mundo.
O consumo de baleias, que ganha notícias todos os anos nos jornais — com especial atenção na última semana por conta do maior massacre de golfinhos já registrado no território —, é legal nas ilhas. E uma forma de se manter as tradições, defendem com afinco os locais.
"As caçadas são totalmente regulamentadas", disse recentemente à agência France Presse (AFP) um porta-voz do governo de Torshavn sobre o grindadrap, hábito que consiste em encurralar, com o auxílio dos barcos, alguns cetáceos na baía, onde eles são mortos por pescadores em terra.
"Reconhecemos que a caça aos cetáceos nas Ilhas Faroé é um espectáculo dramático para as pessoas pouco habituadas à caça e abate destes mamíferos", afirmou. "Mas trata-se de uma tradição ancestral".
O animal tem sido fonte de alimentação local desde que os vikings se estabeleceram ali nos idos do século 6. Todo o arquipélago é habitado por uma população de centenas de milhares de baleias e golfinhos, e a caça — jura o governo — não representa nenhum tipo de desequilíbrio ambiental.
A mesma coisa para os simpáticos papagaios-do-mar, que por estarem sempre próximos às rochas para conseguir peixe acabaram por se tornar uma presa para os marinheiros que passaram a degustar as perninhas e o peito da ave nas refeições.
Se já não estão tão presentes nos pratos — apanhá-los é uma tarefa árdua que pode levar à morte em choques contra as pedras —, eles se tornaram mascotes das ilhas nas lojas de souvenir, onde vendem tanto quanto os chaveiros da Torre Eiffel em Paris.
Nas lojas do aeroporto de Vágar, aliás, estavam quase esgotados quando fui pegar meu voo de volta para Copenhagen, a principal rota de e para as ilhas.
Sem os pássaros nas prateleiras e muitos mais aviões a cruzar as densas nuvens brancas que já são constantes no horizonte local, é uma prova de que o turismo já está de volta.
Pelo menos até que se consiga manter os vírus tão longe quanto é chegar por aqui. Até lá, volto a vestir a máscara e ver (quase) todos os outros passageiros a fazerem o mesmo. Em poucos minutos sai o meu avião com destino à realidade.
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